De alguns anos pra cá, tem emergido com a força de um furioso pé na porta um número de bandas brasileiras que compartilham certas características em comum: Metal (ou alguma vertente Core) aliado a um clima de periferia, ilustrado ainda com “letras cabeça”. É uma onda de bandas interessadas em fazer um som identificado com o povo, com o subúrbio, acrescentando ainda uma especial preocupação com as letras, procurando retratar a realidade e protestar contra os sofrimentos da vida cotidiana e moral, e também contra o sistema, sempre com a eficácia de um tiro a queima-roupa. Bandas como Project46 e Worst são grandes representantes atuais desse modelo sonoro, mas não as únicas, é claro – há outras, sobretudo uma bem mais antiga, cujo som galgou com ainda mais intimidade pela atmosfera periférica: o Uganga.
~> Texto originalmente publicado no Warriors Of The Metal.
Veterano, o quinteto das cidades de Araguari e Uberlândia, no Triângulo Mineiro, construiu um forte nome para si, acumulando quatro álbuns e um live lançados, excelente repercussão principalmente dos discos mais novos e duas turnês europeias. Toda a safra de frutos maduros e positivos não veio fácil, nem por acaso: é resultado do entrosamento de uma formação estável há mais de 10 anos, maturidade e constante refinamento da sonoridade. Falar neste último atributo é interessante, já que a banda começou fazendo algo parecido, mas sensivelmente diferente do que é feito atualmente. Migraram de uma postura fortemente calcada no Skate Rock, Ska, Punk Rock e Hip Hop para outra mais agressiva, assentada no balizamento do Groove Metal, Thrashcore e Hardcore, sem se desgarrar completamente dos antigos elementos. A mudança fez bem, embora a banda sempre tenha demonstrado bastante qualidade. Por isso, é um dos nomes a ser lembrados nessa onda de bandas que exploram os diversos tipos de Core (Thrashcore, Metalcore, Hardcore, Deathcore).
Formada no ano de 1993, a banda composta atualmente por Manu “Joker” (vocal), Christian Franco (guitarra), Thiago Soraggi (guitarra), Raphael “Ras” Franco (baixo) e Marco Paulo Henriques (bateria) começou com o nome Ganga Zumba e dessa forma lançou três demos: “Antes Que O Mal Cresça”, em 1997; “100 Pressa, 100 Medo”, em 1998; e “Couro Cru”, em 1999.
Após a terceira demo, algumas mudanças aconteceram nos interiores da banda, inclusive no que tange ao próprio nome. Foi quando passaram a ser conhecidos como são atualmente, porém com grafia ainda diferente: U-ganga. Sob o novo título, enfim veio o álbum de estreia em 2003, nomeado “Atitude Lótus” e lançado de forma independente.
O desavisado que ouve esse disco pode chegar a uma de duas conclusões, talvez ambas: ou se trata de uma banda santista, ou de um compilado de músicas pouco conhecidas do início de carreira do Charlie Brown Jr.. É cristalino como a banda de Chorão é a principal referência dos mineiros, muitas vezes de forma até abusiva. Pra quem gosta, como eu, isso não é exatamente um problema – até faz ter vontade de, ao fim dos 53 minutos de álbum, pegar o “Nadando Com Os Tubarões” (2000) ou o “Transpiração Contínua Prolongada” (1997) para ouvir. Por outro lado, também revela uma banda que demonstrava potencial, mas ainda tentava se encontrar.
A primeira tentativa do Uganga foi bastante diversificada, assim como foi o Charlie Brown Jr, naquele tempo. Cada acorde, cada detalhe das percussões, cada elemento musical exalam brasilidade em empolgadas composições – e digo empolgadas pela criatividade, não pelo astral das músicas, necessariamente. O andamento das faixas varia de acordo com a passagem, ou com o modelo rotular da música. Em toda sua trajetória, o disco apresenta forte calcamento no Skate Rock, no Ska e no Rapcore, com ocasionais inclinações ao Reggae, Hardcore e Punk Rock, entre outros elementos menos frequentes. Ou seja: temos Rock de fato – mas sem acordes complexificados – cantado em vocal limpo de estilo Rapcore, num jeitão um tanto “gangsta”, gerando um clima de subúrbio aguçado por incidências samples de DJ que chegam a vagamente lembrar o Linkin Park também daquela época.
Vinhetas marcam presença entre faixas, sejam instrumentais ou em diálogos, e essa característica seguiria acompanhando a banda durante toda a carreira.
Os vocais de Manu “Joker”, por sua vez, são idênticos aos de Chorão, isso há de ser dito. São bem reverberados e oscilam na velocidade e no tom com bastante frequência, dando energia ou cadenciando, mas sem exageros, já que o vocalista não exige de si mesmo. Nos momentos mais amenos, canta grave, mais como se estivesse narrando. O efeito é bem “mano”.
Trocando em miúdos, o disco é bem diferente do que se tornaria o Uganga mais tarde, e nem por isso deixa de ter qualidade, apesar da produção que deixa um pouco a desejar. As músicas são fáceis de assimilar, identificáveis já na primeira ouvida. Realmente, “Atitude Lótus” é um disco muito agradável, e talvez se não fosse o primeiro trabalho dos mineiros ou tivessem conseguido maior repercussão imediatamente, poderia até receber um “Acústico MTV”. Ele clama por isso!
Três anos mais tarde é lançado o segundo álbum de estúdio, “Na Trilha do Homem de Bem”, agora através da Metal Soldier Records. O nome do selo é uma boa pista sobre o que é feito nesse trabalho – começa a transição sonora.
Agora a banda soa mais vigorosa e pesada, além de mais objetiva. Aquela excessiva atmosfera Charlie Brown Jr. perde espaço para uma sonoridade que dialoga de perto com o Metal, mas que encontra seu lugar ao sol num integral Hardcore/Punk Rock – e isso de certa forma se reflete na duração do álbum, que tem pouco mais de meia hora. No entanto, muitos elementos remanescentes de “Atitude Lótus” ainda se escancaram sem qualquer timidez, como a presença de samples de DJ, muitas passagens de Rapcore e até alusões ao Ska e ao Reggae. Ainda assim, nada que prejudique as canções – pelo contrário, torna elas ainda mais completas e ricas.
Claramente, o ainda “U-ganga” ganhou mais personalidade e força musical com esse disco. Aquela clara brasilidade do disco anterior foi embora, mas o clima de periferia se manteve através da manutenção das letras “cabeça” e a preservação da timbragem e estilo do vocalista Manu “Joker”, que ainda canta de maneira bem “mano”. No entanto, as mudanças que a banda começou a empregar não afetaram apenas o instrumental, que ficou mais pesado e com riffs melhor trabalhados, mas também o vocal, que começou a aplicar drives e elevar ainda mais os tons. Era o prelúdio mais bruto do que a banda esmerilharia melhor em discos posteriores.
Novamente, trata-se de um excelente álbum de uma banda mais madura, convincente e segura. Dá gosto de ouvir e poderia até ter duração mais longa. “Na Trilha do Homem de Bem” aproxima a banda do público roqueiro, punk e metaleiro, e os integra no rol de bandas da periferia que conquistariam o país mais tarde.
Mais quatro anos se passaram e então mais um álbum chegou. Novamente através da Metal Soldier Records, “Vol. 3: Caos Carma Conceito” foi lançado em 2010 e conquistou não apenas o Brasil, mas também o outro lado do Atlântico.
Não é pra menos: o disco é absolutamente convincente e expressa energia, confiança e vigor nunca antes demonstrados pela banda de maneira tão fantástica. A partir daqui, não apenas a grafia do nome se atualizou (agora sem hífen), mas também a musicalidade, que migrou para o que os tornou especialmente conhecidos e ainda praticam hoje. O que é exposto em “Vol. 3” é um agressivo Thrashcore/Groove Metal de forte ascendência Hardcore/Punk, trazendo ainda lampejos instrumentais de Death Metal e Thrash Metal. Claro, aquele pé suburbano segue chutando cadeiras e mesas, mas dessa vez esse clima está muito melhor aproveitado e trabalhado.
O instrumental se inflamou. É Metal. É Core. Seu engrandecimento se dá através de composições empolgadas, com riffs groovados, bem arquitetados e vigorosos, empregados em músicas acaloradas, de andamento pegado, que chamam o moshpit. Os elementos dos primeiros álbuns ainda aparecem, mesmo com a supremacia das guitarras distorcidas, do pulsante baixo (cujas linhas são compostas com beleza e muito bem inseridas, diga-se de passagem) e da violenta bateria. Passagens mais brasileiras emergem ocasionalmente em quebras de ritmo, samples enfeitam aqui e acolá, interlúdios dialogais sintonizam o ouvinte com as faixas…
Solos de guitarra eram coisas escassamente praticadas pelo Uganga, mas aqui eles dão o ar da graça com mais liberdade. Sempre achei solos essenciais, por isso a presença deles aqui, sobretudo num disco porrada, é muito bem-vinda. Eles são muito bem executados e aparecem em faixas como “Fronteiras da Tolerância”, “ISO 666” e “Sua Lei, Minha Lei”.
Toda essa excelente agressividade é acompanhada de perto pelo vocal, que também teve qualidade elevada. As linhas são cantadas quase integralmente com furiosos drives, rasgados que expressam o sentimento, a revolta, a indignação. Poucas vezes o vocal é limpo e em tom mais baixo. Notáveis são também os constantes acionamentos dos backing vocals que, assim como no Punk, entram em coro gritando palavras-chave das letras. O aproveitamento dessa artimanha só vem a trazer mais refinamento, tornando a característica da banda ainda mais acentuada.
A excelência de “Vol. 3 Caos Carma Conceito” pôs o Uganga em merecida evidência e rendeu à banda sua primeira turnê europeia. Foram 27 dias de excursão através de sete países: Bélgica, Polônia, Suíça, República Tcheca, Alemanha, Espanha e Portugal.
Em 2013, a banda voltou à Europa para mais uma bateria de shows em países como França, Suíça, Polônia, Eslovênia, Áustria, Itália e Hungria. Tal marco não poderia passar em branco. Por isso, algumas apresentações foram registradas e inseridas no disco ao vivo “Eurocaos”, lançado mais tarde, naquele mesmo ano, pela Metal Soldiers Records. O trabalho compreende apresentações no Razorblade Festival em DatteIn, na Alemanha, e no Side B Lounge Live Club em Benavente, Portugal.
Agora de contrato assinado com a Sapólio Rádio, o Uganga apresentou mais um relevante lançamento. Distribuído pela Som do Darma, “Opressor”, o quarto álbum de estúdio dos mineiros e apresenta uma atmosfera carregada, com pesar.
Se “Vol. 3” foi um álbum intenso e “desenfreado” musicalmente, como um verdadeiro atropelamento, o mesmo não pode ser dito na mesma proporção sobre “Opressor”. Dessa vez, a banda está de postura um pouco diferente, embora se aproveite dos mesmos recursos. Vemos uma banda mais dosada, interessada em riffs bem desenhados e variados, sem deixar o bem-vindo peso de lado. Claro, uma vez que a musicalidade apresentada aqui é primordialmente um Thrashcore com fortíssimos grooves nos riffs, dificilmente o resultado seria fraco e leve. A aura é densa, realmente carregada, negra, como nunca havia sido antes. Há um claro gerenciamento da maturidade acumulada ao longo de mais de 20 anos de carreira, levando a uma musicalidade realmente pensada desde a arquitetura das composições às expressivas letras.
Certamente a transposição do ambiente suburbano não poderia faltar na musicalidade. Os grooves são “streeteiros”, e o vocal, mais grave e ‘driveado’, imprime uma abordagem obscura, acompanhando a densidade instrumental. Manu “Joker” aplica tom mais baixo do que o aplicado no disco anterior, em excelente comunhão com um disco que esbanja solidez. Backing vocals também são ativos, sempre nos conhecidos coros que, fortes, chegam a fazer o peito estufar.
“Opressor” compreende uma coleção de 13 músicas de personalidade, cobertas pelo manto da experiência de uma banda entrosada há muito tempo. Entre brasilidades, percussões, samplers, interlúdios dialogais e muito peso, o disco convence verdadeiramente com seus 40 minutos de duração. Temos direito a até um excelente cover de “Who Are The True?”, do Vulcano, banda pioneira do Metal Extremo no Brasil e uma das referências dos rapazes do Uganga.
Gravado no estúdio Rocklab em Goiânia (GO) e produzido por Gustavo Vazquez (que já trabalhou com bandas como Black Drawing Chalks, Krow, Hellbenders e Macaco Bong), o disco teve sua detalhada capa e contracapa desenhadas pelo talentoso Bento Andrade.
A discografia dos mineiros do Uganga – embora seja curta em relação ao tempo de estrada da banda – é uma prova de que entrosamento, maturidade e anos de estrada fazem a diferença. A banda está em constante evolução, constante esmerilhamento de suas habilidades e ideias musicais, ao mesmo tempo em que permanece leal às suas origens e ao estilo. Todos os discos são de muita qualidade, e merecem a ouvida que a Som do Darma auxilia pra que aconteça.
Formação:
Manu “Joker” (vocal);
Christian Franco (guitarra);
Thiago Soraggi (guitarra);
Raphael “Ras” Franco (baixo);
Marco Paulo Henriques (bateria).
Discografia:
Atitude Lótus (2003)
01 – Língua Nos Dentes
02 – Sai Fora
03 – Mar da Lembrança
04 – VG
05 – Prekol
06 – Não Ponha Tudo A Perder
07 – Ouro de Julho
08 – Sibipiruna
09 – Loco (Fim de Tarde)
10 – 2000 É Pouco
11 – Couro Cru
12 – Aquática
13 – Confluência
Na Trilha do Homem de Bem (2006)
01 – Pagar Pra Ser Feliz
02 – Procurando O Mar
03 – Tri
04 – Loco II
05 – Corrida
06 – Falando de Igualdade
07 – Chaves
08 – A.C.
09 – Altos e Baixos
10 – Lado A Lado
Vol. 3: Caos Carma Conceito (2009)
01 – Kali-Yuga (Caos 1)
02 – Fronteiras da Tolerância (Caos 2)
03 – 3XC (Caos 3)
04 – Meus Velhos Olhos de Enxergar O Mal (2 Lobos) (Caos 4)
05 – Asas Negras (Caos 5)
06 – ISO 666 (Caos 6)
07 – Velas (Carma 1)
08 – Sua Lei, Minha Lei (Carma 2)
09 – Encruzilhada (Carma 3)
10 – Milenar (Carma 4)
11 – Zona Árida (Carma 5)
12 – P.A.X. (Carma 6)
13 – Primeiro Inquilino (Conceito 1)
Eurocaos Ao Vivo (Live) (2013)
01 – Kali-Yuga (Caos 1)
02 – Asas Negras (Caos 5)
03 – 3XC (Caos 3)
04 – Meus Velhos Olhos de Enxergar O Mal (2 Lobos) Caos 4)
05 – Sua Lei, Minha Lei (Carma 2)
06 – Zona Árida (Carma 5)
07 – Fronteiras da Tolerância (Caos 2)
08 – Van
09 – Troops of Doom
10 – Nightmare (Short Version)
11 – Não Desista
12 – Desespero
13 – Antwerpen Dub
Opressor (2014)
01 – Guerra
02 – O Campo
03 – Veredas
04 – Opressor
05 – Moleque de Pedra
06 – Casa
07 – L.F.T.
08 – Modus Vivendi
09 – Nas Entranhas do Sol
10 – Aos Pés da Grande Árvore
11 – Noite
12 – Who Are The True?
13 – Guerreiro
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