Hoje é dia de Tá Na Letra! No Tá Na Letra você fica por dentro de interpretações sobre o significado das músicas. Claro que interpretações distintas são válidas, afinal, a arte não possui verdade absoluta e cada um entende a mensagem de uma forma. Aqui nesta série tentamos colocar apenas mais uma possível compreensão da música. A música de hoje é Something in the Way da banda Nirvana.
Nirvana foi uma das grandes bandas do cenário Grunge dos anos 90. Liderada por Kurt Cobain, o power trio de Seattle era composto também por Krist Novoselic no baixo e Dave Grohl na bateria (na formação clássica). Com o lançamento do disco Nevermind (no dia 24 de Setembro de 1991), a banda chamou a atenção da mídia para a cena que surgia na cidade. O disco foi um sucesso, um dos maiores e melhores discos dos anos 90.
A faixa Something in the Way é a que encerra o album mais famoso da banda e o mais famoso dos anos 90, o Nevermind (em algumas versões em CD há uma faixa oculta após 10 minutos do término do álbum chamada Endless Nameless, porém oficialmente ainda é Something in the Way a faixa que encerra o trabalho).
Além de ser a faixa de encerramento do álbum, é uma das mais tristes e angustiantes escritas pelo músico Kurt Cobain e esta angústia é facilmente notável ao ouvir o trabalho.
Há uma história de que a faixa, apesar de simples, fora difícil de ser gravada uma vez que Kurt Cobain não ficava satisfeito com a sensação transmitida pela música nas gravações. Em um certo momento, o músico saiu do estúdio e tentou apresentar para o produtor Butch Vigh como queria que a música soasse; o produtor percebera que aquela sensação que ele estava passando na música era único e pegou todo o equipamento de gravação do estúdio e colocou nessa sala externa para que pudesse captar aquela versão densa da música.
Something in the Way (Alguma coisa no Caminho)
Debaixo da ponte
Apareceu um rasgo na lona
E os animais que capturei
Todos se tornaram meus bichos de estimação
E eu dei a eles grama o bastante
E o teto está gotejando
Tudo bem em comer peixe
Pois eles não têm sentimentos
Alguma coisa no caminho
Alguma coisa no caminho
Alguma coisa no caminho
Alguma coisa no caminho
Alguma coisa no caminho
Alguma coisa no caminho
Diferente do que é retratado na música, Cobain nunca morou embaixo da ponte. Suas constantes brigas com sua mãe e o novo marido dela fizeram com que ele fosse sim expulso de casa, mas não morou embaixo da ponte. O local citado era mais uma fuga para ele e outros jovens, que ficavam ali bebendo e se drogando.
Não há como ele ter morado ali, até porque a maré do rio não deixaria: quando ela sobe, não há espaço embaixo da ponte para que alguém passe a noite. Mas sim, é a metáfora perfeita para alguém que não tem mais casa e não tem para onde ir.
Kurt morou na casa de amigos, dormiu em sofás, caixas de papelão e tudo mais onde pôde; chegou até a dormir em salas de espera de hospitais fingindo estar realmente esperando alguém, tudo para ter algum lugar para passar a noite.
Seu amor por animais também é relatado na música: ele sabia que os amores mais sinceros e incondicionais que teve eram de seus bichos de estimação. Ele os amava. Em biografias sobre o músico foi relatado que ele teve uma tartaruga em sua adolescência e a amava muito.
A busca por uma saída é o que mantém a música ativa: alguma coisa no caminho. Pode ser uma saída, um objetivo, algo que o tire do buraco. No caso de Cobain esta “alguma coisa” era sua música: mesmo quando tudo parecia ser o contrário, ele insistiu em sua arte.
Kurt rejeitou Aberdeen (a cidade onde cresceu), mas Aberdeen também rejeitou Kurt Cobain e vários outros jovens durante muito tempo. O músico deixa claro em várias músicas que a cidade é cheia de pessoas preconceituosas, antiquadas e machistas e ele era contra isso de forma ferrenha.
Quando conheceu o Punk Rock, Cobain certamente se encontrou e percebeu que aquela sonoridade era libertadora. O Grunge é mais um movimento de estilos de pensar, de se expressar do que realmente uma vertente sonora do Rock; muito disso se deve ao Punk Rock: algumas bandas se inspiraram no estilo, outras passaram bem longe. Este é o motivo de o Grunge ser mais um movimento artístico do que realmente uma vertente musical: sonoramente, as bandas não se parecem.
O slogan “faça você mesmo” inspirou Kurt a lutar e se revoltar contra tudo o que sua cidade lhe oferecia, o que seu mundo lhe oferecia; mas ficar calado e aceitar tudo não era opção para ele.
Ele também estava longe de ser o melhor guitarrista, mas acreditava no que estava fazendo, sabia que seu sonho poderia ser possível e que poderia haver “algo no caminho”. Ele não desistiu. Ele não se readequou ao que os outros queriam, mesmo que isso lhe custasse viver sozinho, não ter casa, não ter família: ele seguiu em frente.
Something in the Way é um sopro angustiante de esperança e mostra ao mundo até onde ele chegou por seus ideais. Claro que dentro disso também havia uma rebeldia adolescente, uma falta de vontade de procurar emprego e construir sua própria vida: mas isso não era à toa, ele apenas (assim como muitos outros jovens) não se encaixava naquele mundo e queria deixar isto claro.
Conhecendo um pouco mais sobre Kurt, a música acaba fazendo ainda mais sentido. Sim, a letra é apenas a descrição de alguém que mora embaixo da ponte, mas o que importa é o que o levou a estar ali.
Ele não gostava de estudar, mas era um ótimo desenhista e um bom músico. Ele odiava esportes e odiava sofrer violência de valentões que achavam que ele não se encaixava. Ele odiava o machismo e o sexismo e não aceitava ver pessoas sendo discriminadas apenas por serem mulheres ou por serem gays. Toda sua ideologia, toda sua luta, toda sua revolta fez com que ele chegasse a morar na rua: ele não se encaixava, não queria se encaixar e foi até as últimas consequências por isso.
Muitas vezes ouvimos que Kurt odiava a fama. Mentira, ele odiava parte da fama, mas sempre a almejou, sempre quis fazer de sua arte, de sua música, um trabalho. Ele acreditou tanto nisso que, mesmo sem dinheiro, mesmo sem um bom emprego, jamais desistira dela. Quando encontrou alguém que lutou ao seu lado por este sonho (o baixista Krist Novoselic), Cobain foi ainda mais a fundo junto de seu amigo atrás deste sonho.
Foi difícil encontrar um baterista que se encaixasse no projeto, vários passaram pela banda e não se encaixaram. Encontraram Dave Grohl após vê-lo tocando com sua antiga banda, era a pessoa perfeita, o músico perfeito para o que buscavam.
Something in the Way fora escrita bem antes do sucesso do Nirvana. Aliás, até o lançamento do disco Nevermind (1991), o Nirvana era apenas uma banda pequena de Seattle que a grande gravadora via um potencial.
Something in the Way é um desabafo intenso, forte, dolorido, mas, ao mesmo tempo, encorajador e que mostra para as pessoas que, se você acredita no que está fazendo e luta por um ideal, ir até as últimas consequências por isso pode valer a pena. É claro que nem todos serão grandes sucessos mundiais na música como ele foi, nem todos chegarão ao topo, mas a faixa também deixa implícito que se ele houvesse desistido quando estava em sua pior situação de vida, ele não teria chegado ao sucesso que tanto buscou. Sim, ele buscou. Sim, ele queria que conhecessem sua obra, que conhecessem sua música, que ouvissem seu trabalho. Ele só não sabia que chegaria ao topo, só não sabia que seria o porta-voz de uma geração, mas é fato que ele queria viver de sua música e não desistiu dela em nenhum momento.
O melhor de tudo é saber que Cobain continuara a mesma pessoa, mesmo após a fama. Ele apenas queria ser feliz, queria ajudar as pessoas, queria amar e ser amado. Se ele gostava de algo, ele fazia; não importava o que os outros pensavam, não importava se arranharia sua imagem. Isso se aplica também a outras bandas: se ele gostava do trabalho, ele escutava, ele deixava que as bandas abrissem shows do Nirvana, não importava se a banda era famosa ou não, não importava se a gravadora concordava ou não.
Aliás, isso servia para as próprias covers que o Nirvana gravara ao longo de sua carreira. Kurt poderia ter escolhido grandes sucessos, mas preferiu escolher aquelas que faziam mais sentido para ele, aquelas que tinham a ver com aquilo que ele acreditava. Quem já não ouviu The Man Who Sold the World ou Where Did You Sleep Last Night no Nirvana MTV Unplugged in New York e não achou que eram músicas da própria banda? Não, são covers! Mas que casavam tão perfeitamente com Cobain que ele as apresentou e pareceram ser dele; havia alma ali como sempre houve em cada verso que ele escrevera, em cada acorde que ele colocara em suas músicas, em cada trecho que ele compôs.
A faixa Something in the Way fala pouco, é simples, uma letra que não dá muita informação, mas todo o contexto onde foi ela foi escrita e toda a obra do músico e da banda dão a ela um lugar muito especial. É um pedido de socorro sim, mas, ao mesmo tempo, é um recado de esperança: ainda há algo no caminho e o eu lírico lutará para chegar a este lugar. E Kurt chegou, o Nirvana chegou.