Hoje é dia de Tá Na Letra! No Tá Na Letra você fica por dentro de interpretações sobre o significado das músicas. Claro que interpretações distintas são válidas, afinal, a arte não possui verdade absoluta e cada um entende a mensagem de uma forma. Aqui nesta série tentamos colocar apenas mais uma possível compreensão da música. A música de hoje é Terra de Gigantes da banda Engenheiros do Hawaii.
Engenheiros do Hawaii é uma banda formada em Porto Alegre – RG em 1984. A banda lançou 18 álbuns oficiais ao todo, contando com discos de estúdio e discos Ao Vivo, e encerrou as atividades há alguns anos. Depois de várias mudanças na formação da banda, o vocalista e líder da banda, Humberto Gessinger, percebeu que fazia mais sentido trabalhar como carreira solo do que levar o nome da antiga banda adiante. Hoje ele segue em atividade, lançando novos trabalhos e, também, fazendo constantes releituras dos trabalhos lançados junto dos Engenheiros do Hawaii.
As letras de Humberto Gessinger costumam ser bem complexas, citando elementos distintos em vários contextos distintos para que tudo junto possa fazer sentido. Sendo assim, temos que entender todo o contexto em que a música foi lançada, qual a ideia da banda num geral, a representação da mesma quanto às suas mensagens para depois fazer uma interpretação mais certeira.
A formação clássica da banda contou com Humberto Gessinger no baixo, nos vocais, nos teclados e pianos, Augusto Licks na guitarra e nos pianos e Carlos Maltz na bateria e percussões. A faixa escolhida para o Tá Na Letra de hoje se chama Terra de Gigantes e foi gravada pela formação clássica da banda, sendo a segunda faixa do segundo álbum da banda, o trabalho chamado A Revolta dos Dândis (1987).
Terra de Gigantes
Hey, mãe!
Eu tenho uma guitarra elétrica
Durante muito tempo isso foi tudo
Que eu queria ter
Mas, hey mãe!
Alguma coisa ficou pra trás
Antigamente eu sabia
exatamente o que fazer
Hey, mãe!
Tem uns amigos tocando comigo
Eles são legais, além do mais
Não querem nem saber
Mas agora, lá fora
Todo mundo é uma ilha
A milhas e milhas e milhas
De qualquer lugar
Nessa terra de gigantes
Eu sei, já ouvimos tudo isso antes
A juventude é uma banda
Numa propaganda de refrigerantes
As revistas, as revoltas, as conquistas
Da juventude são heranças
São motivos pras mudanças de atitude
Os discos, as danças, os riscos
Da juventude
A cara limpa, a roupa suja
Esperando que o tempo mude
Nessa terra de gigantes
Tudo isso já foi dito antes
A juventude é uma banda
Numa propaganda de refrigerantes
Hey, mãe!
Já não esquento a cabeça
Durante muito tempo
Isso foi só o que eu podia fazer
Mas, hey hey, mãe!
Por mais que a gente cresça
Há sempre coisas que a gente
Não pode entender
Por isso, mãe
Só me acorda quando o sol tiver se posto
Eu não quero ver meu rosto
Antes de anoitecer
Pois agora lá fora
O mundo todo é uma ilha
A milhas e milhas e milhas
Nessa terra de gigantes
Que trocam vidas por diamantes
A juventude é uma banda
Numa propaganda de refrigerantes
Nessa terra de gigantes
Que trocam vidas por diamantes
A juventude é uma banda
Numa propaganda de refrigerantes
Hey, mãe
Hey, mãe
A música é traz a visão de um jovem de sua época (anos 80) tomando consciência de sua vida e sua existência dentro da sociedade. A letra traz duras críticas à participação (ou falta dela) dos jovens nas decisões mais sérias do convívio social e traz à tona a descoberta de uma completa alienação vivida por eles.
Terra de Gigantes talvez seja uma das letras mais profundas de Humberto Gessinger, trazendo várias críticas em sua letra. O eu lírico está mandando um recado para sua mãe e relata suas descobertas, relata que cresceu e já não é mais um garoto e que, agora, entende melhor o que é a vida. Ele se vê em uma “terra de gigantes”, que seria a terra de pessoas que têm muito poder e dominam os outros, seja por meio do dinheiro, seja trazendo alienação à sociedade.
A música começa dizendo “Hey, mãe, eu tenho uma guitarra elétrica, durante muito tempo isso foi tudo o que eu queria ter”, mostrando que o rapaz conquistou seu sonho de infância que era ter o instrumento. O que antes era o mais importante para ele, agora que está mais velho, ele percebeu que ter o instrumento, saber tocá-lo, ter uma banda; tudo isso ainda não é suficiente: ele percebeu que o mundo é muito mais que isso.
Em “Hey, mãe, alguma coisa ficou para trás: antigamente eu sabia exatamente o que fazer”, que, ao tornar-se mais velho, o eu lírico percebe que os planos de infância já não são suficientes; agora ele já não sabe o que fazer, percebe que está perdido, porém lúcido, dentro de uma juventude completamente alienada e estagnada.
A expressão mais importante da música ou, pelo menos, uma das mais importantes é “todo mundo é uma ilha”: aqui Gessinger ataca a individualidade extrema e o egoísmo das pessoas, pois todas estas ilhas citadas estão a milhas e milhas de qualquer lugar, ou seja, todos estão sozinhos, distantes, isolados, presos em seu egoísmo e não percebem esta alienação e este isolamento.
O primeiro refrão vem ainda mais áspero: “A juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes”: a juventude de sua época se resume a imagem e vendas, apenas isso. Resumir toda a juventude a uma propaganda de refrigerantes é exaltar a alienação deste povo perante os problemas vividos na época e mostrar que sim, “tudo está bem, apenas divirta-se” enquanto os gigantes continuam dominando tudo e todos.
A dicotomia alienação e poder é constantemente apresentada na obra de Gessinger. Em outra música chamada 3ª do Plural, lançada no álbum Dançando no Campo Minado (2004), ele vai apresentando a alienação das pessoas dentro de uma vida toda manipulada e consumista, vendo uma população toda dominada por “eles”. E aí vem a pergunta: “Quem são eles? Quem eles pensam que são?”. A faixa apresenta um círculo vicioso de alienação onde estamos presos: “Corrida para vender cigarro, cigarro para vender remédio”; ou seja, enquanto pagamos pelos nossos venenos e pela nossa cura, eles nos aplaudem e lucram com isso.
Voltando à faixa Terra de Gigantes, o eu lírico segue seu relato dizendo das conquistas deixadas por jovens de épocas anteriores que ajudaram a trazer a liberdade para essa sociedade de jovens de sua época, mas que está permitindo ser alienada e dominada por pessoas que buscam o poder. Isso fica claro em “As revistas, as revoltas, as conquistas da juventude; são heranças, são motivos para as mudanças de atitude”, ou seja, tudo o que foi conquistado até ali não poderia parar, toda a luta era motivo para que a juventude tivesse cada vez mais voz. Mas, segundo Gessinger, os jovens apenas seguiam esperando que tudo ficasse bem, mas sem lutar.
O segundo refrão é um ataque ao poder: “nessa terra de gigantes, que trocam vidas por diamantes”; aqui fica claro que o lucro é o que importa! Quem está no poder quer apenas seu lucro, não se importa com a juventude, não se importa com ninguém, eles trocam até as vidas por dinheiro.
O egoísmo e a alienação fizeram com que o jovem perdesse seu poder diante da sociedade, esquecesse seu papel, sua luta e fosse dominado. Se a juventude da época já estava alienada, o que dizer da juventude atual? Uma juventude que não sabe interpretar frases, que apenas vive alienada, esbanjando egoísmo e uma pobreza intelectual imensa? Mesmo tendo acesso fácil a muita informação, a juventude atual prefere escolher futilidades, prefere viver manipulada por gigantes que dão a ela “pão e circo”, permitindo que a juventude esteja distraída o suficiente para não pensar.
Uma curiosidade da música é que, em sua versão original, ela tem apenas uma virada de bateria durante toda ela, não tendo mais a presença do instrumento em parte alguma. Isso acontece porque a ideia da banda era gravar ela toda sem bateria, porém a gravadora e as rádios exigiam que músicas mais populares tivessem bateria. Com essa virada, os ouvintes e os radialistas, quando ouviam um trecho pela primeira vez, passavam o resto da música esperando a bateria que não vinha e não veio mesmo. A banda provou que, para a música fazer sucesso, não precisava ter bateria, pois a faixa foi um sucesso na época. Já no Acústico MTV (2004) a banda gravou com bateria.
Assim, fica claro que a banda sabia o que estava fazendo e acreditava no formato em que queria apresentar a música: guitarra e voz. A virada de bateria foi um protesto em forma de sátira, sendo genial e deixando claro seu recado sem agredir.
Quem são, então, os gigantes? Eles têm tanto poder assim ou podem ser confrontados? Gessinger deixa claro que sim, há como lutar, há como ser relevante dentro da sociedade. Mas, para isso, teria que fugir da alienação e buscar para que sua voz fosse ouvida. Talvez os gigantes não sejam tão temíveis assim.