Tá Na Letra #14: Engenheiros do Hawaii – Muros e Grades

Hoje é dia de Tá Na Letra! No Tá Na Letra você fica por dentro de interpretações sobre o significado das músicas. Claro que interpretações distintas são válidas, afinal, a arte não possui verdade absoluta e cada um entende a mensagem de uma forma. Aqui nesta série tentamos colocar apenas mais uma possível compreensão da música. A música de hoje é Muros e Grades da banda Engenheiros do Hawaii.

Engenheiros do Hawaii é uma banda formada em Porto Alegre – RG em 1984. A banda lançou 18 álbuns oficiais ao todo, contando com discos de estúdio e discos Ao Vivo, e encerrou as atividades há alguns anos. Depois de várias mudanças na formação da banda, o vocalista e líder da banda, Humberto Gessinger, percebeu que fazia mais sentido trabalhar como carreira solo do que levar o nome da antiga banda adiante. Hoje ele segue em atividade, lançando novos trabalhos e, também, fazendo constantes releituras dos trabalhos lançados junto dos Engenheiros do Hawaii.

As letras de Humberto Gessinger costumam ser bem complexas, citando elementos distintos em vários contextos distintos para que tudo junto possa fazer sentido. Sendo assim, temos que entender todo o contexto em que a música foi lançada, qual a ideia da banda num geral, a representação da mesma quanto às suas mensagens para depois fazer uma interpretação mais certeira.

A música Muros e Grades se encontra no álbum Várias Variáveis lançado em 1991. A formação da banda à época é a considerada formação clássica da banda, que contava com Humberto Gessinger no baixo, teclado e voz; Augusto Licks na guitarra e nos violões e Carlos Maltz na bateria e na percussão.

Muros e Grades

Nas grandes cidades, no pequeno dia a dia
O medo nos leva a tudo, sobretudo à fantasia
Então erguemos muros que nos dão a garantia
De que morreremos cheios de uma vida tão vazia
Então erguemos muros que nos dão a garantia
De que morreremos cheios de uma vida tão vazia

Nas grandes cidades de um país tão violento
Os muros e as grades nos protegem de quase tudo
Mas o quase tudo quase sempre é quase nada
E nada nos protege de uma vida sem sentido
O quase tudo quase sempre é quase nada
E nada nos protege de uma vida sem sentido

Um dia super
Uma noite super
Uma vida superficial
Entre as sombras
Entre as sobras
Da nossa escassez

Um dia super
Uma noite super
Uma vida superficial
Entre cobras
Entre escombros
Da nossa solidez

Nas grandes cidades de um país tão irreal
Os muros e as grades
Nos protegem de nosso próprio mal
Levamos uma vida que não nos leva a nada
Levamos muito tempo pra descobrir
Que não é por aí, não é por nada não
Não, não, não pode ser, é claro que não é
Será?

Meninos de rua, delírios de ruína
Violência nua e crua, verdade clandestina
Delírios de ruína, delitos e delícias
A violência travestida, faz seu trottoir
Em armas de brinquedo, medo de brincar
Em anúncios luminosos, lâminas de barbear!

Um dia super
Uma noite super
Uma vida superficial
Entre as sombras
Entre as sobras
Da nossa escassez

Um dia super
Uma noite super
Uma vida superficial
Entre cobras
Entre escombros
Da nossa solidez

Viver assim é um absurdo (como outro qualquer)
Como tentar um suicídio (ou amar uma mulher)
Viver assim é um absurdo (como outro qualquer)
Como lutar pelo poder (lutar como puder)

A música traz um tema bem polêmico: a violência. Mas, por mais que pareça ser, não é este o foco da música. A letra fala muito mais da vida vazia das pessoas do que da violência em si. A superficialidade das pessoas, vivendo sempre na rotina e não fazendo nada demais em suas vidas. Elas podem até culpar a violência, mas será que a violência impede a vida a tal forma ou é usada apenas como muleta para não viverem de fato?

Os versos mais importantes da música e que resumem bem a letra dela são “Então erguemos muros que nos dão a garantia de que morreremos cheios de uma vida tão vazia”, estar cheio de uma vida sem sentido é a crítica da música toda. Os muros e as grades podem proteger da violência, mas o que protege de uma vida sem sentido? Os versos citados são tão importantes que são repetidos na música mesmo não fazendo parte do refrão, deixando claro que é muito importante para o entendimento do que está sendo dito. Ter a vida vazia é o que deve ser refletido para, em seguida, ser evitado, já que não tem como se salvar disso estando submerso neste mundo.

Em seguida, a letra apresenta que os muros e as grades são capazes de proteger de quase tudo, mas também diz que este “quase tudo” pode ser quase nada por não há o que proteja as pessoas de uma vida sem sentido.

As duas estrofes falam de “nas grandes cidades”, talvez aqui seja uma reflexão de morar em uma cidade grande em busca de oportunidades, mas se submeter a viver escondido, viver em uma rotina de ir ao trabalho e depois para casa, deixando claro que tentar a vida num lugar assim é o mesmo que perde-la, uma vez que não há vida, não há liberdade.

O refrão deixa claro a superficialidade como tema central. Há a contradição da palavra super (que podemos entender como algo bem positivo) com a palavra superficial, que tem o mesmo radical mas que, no contexto, é algo bem negativo. Ter uma vida superficial é como um sobreviver: você cumpre suas obrigações, vive sua rotina e pronto, não há mais nada além disso. É o suficiente? Será que não é um absurdo?

Logo após o refrão, os questionamentos seguem: “Os muros e as grades nos protegem de nosso próprio mal” traz a reflexão de que a sociedade não deu certo e tem que viver praticamente dentro de uma jaula para que possa continuar sobrevivendo. Nós somos nosso próprio mal, o ser humano tem em sua natureza a maldade e, se não dominá-la, será dominado por ela, gerando medo e reclusão para os demais.

O pós refrão traz uma frase que muitos não entendem e que é tirada de outra música, aliás não só é tirada de outra música como é o próprio nome de outra música da banda e que está presente no álbum O Papa É Pop, de 1990: A violência Travestida Faz Seu Trottoir. Para quem não sabe, trottoir é o andar de prostitutas quando esperam por clientes. Fazendo a analogia correta com a música, podemos entender que a violência, quando é travestida de algo bom, ela pode enganar as pessoas e fazer com que não percebam o que está acontecendo e levá-los à sua própria ruína.

A música termina falando que uma vida dessa forma é um absurdo e traz com ela algumas outras coisas que são absurdas como comparação. Traz também um exagero: comparar o perigo de uma vida sem sentido com o perigo de se amar uma mulher. Outra comparação presente é a vida sem sentido com o absurdo de tentar um suicídio, que poderia ser o resultado de toda uma vida desmotivada.

Estamos entre “escombros da nossa solidez” e não percebemos: o que parece ser sólido, não é tão sólido assim; o que parece ser seguro, não é tão seguro assim e o que parece ser vida, talvez não haja tanta vida assim. Viver sem propósito, sem algo que motive a continuar, viver apenas por sobreviver, não é e jamais será o suficiente.

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