Um “conto de fadas” tem a premissa de transmitir conhecimentos e valores culturais que são difundidos de geração para geração, onde o herói (ou heroína) acaba tendo seu cotidiano, conflitos, medos e sonhos expostos através de uma oratória. Pelo seu núcleo problemático ser existencial, um “conto de fadas” pode muito bem ser representado através de uma jornada dividida em quatro etapas, onde cada degrau desbravado leva o personagem central a uma autodescoberta. Estas quatro etapas são divididas da seguinte forma: TRAVESSIA, ENCONTRO, CONQUISTA e CELEBRAÇÃO.
TRAVESSIA: “leva o herói ou heroína a uma terra diferente, marcada por acontecimentos mágicos e criaturas estranhas”.
ENCONTRO: “com uma presença diabólica –uma madrasta malévola, um ogro assassino, um mago ameaçador ou outra figura com características de feiticeiro”.
CONQUISTA: “o herói ou heroína mergulha numa luta de vida ou morte com a bruxa, que leva inevitavelmente à morte desta última”.
CELEBRAÇÃO: “um casamento de gala ou uma reunião de família, em que a vitória sobre a bruxa é enaltecida e todos vivem felizes para sempre”.
Nosso vasto mundo musical está repleto de histórias dignas de um conto de fadas, e se fizermos um contraponto emocional entre algumas destas historias, encontraremos com toda certeza oratórias autenticas que facilmente poderiam fazer parte de alguma obra dos irmãos Grimm. Sendo assim, hoje vou contar a histórias de um Croata chamado Miljenko Matijevic, mais conhecido como “Mili”, fundador de umas das melhores bandas de Hard Rock da história.
Era uma vez….
Mili, o guerreiro do coração de aço
Nascido em 29 de novembro de 1964, Mili viveu até os anos 70 com seus avós e seu irmão John na cidade de Zagreb (Croácia), quando então mudaram para Scarsdale, em New York nos Estados Unidos, e posteriormente, já com sete anos, para Greenwich no Connecticut.
Como toda criança curiosa e cheia de energia, Mili junto com seu irmão tinham brincadeiras variadas, dentre elas uma muito especial era o de serem músicos. John aprendeu a tocar guitarra e nosso protagonista cantava para acompanhar seu irmão que adorava tocar temas “country”.
Aos nove anos de idade Mili já dividia seu tempo entre diversão, estudos e compromissos religiosos que eram uma tradição familiar. Foi nesta época que nosso jovem mancebo descobre que as missas e deveres religiosos podiam ter significados mais empolgantes, Mili passa a fazer parte do coral da igreja, e lá tem suas primeiras aulas de canto descobrindo assim seu grande amor, a música.
TRAVESSIA
Após dois anos estudando e cantando junto ao coral, uma banda muda a vida de nosso herói. Numa bela tarde uma voz forte e linda preenche os ares, o canto misturava técnica, sentimento e atitude, era Robert Plant do Led Zeppelin. Absorto, Mili parece não acreditar que a música podia ser expressada desta maneira, vários sentimentos rondam a cabeça de nosso garoto, existia um mundo novo para ser descoberto, um mundo chamado Rock’n’ roll.
Sua TRAVESSIA não foi marcada por acontecimentos mágicos e criaturas estranhas como num conto de fadas tradicional, mais sim por bandas magicas e criaturas magnificas de criatividade incomum. A influência era tão forte e magnética que Mili quase que inconscientemente monta com seu irmão uma banda, batizada por eles de “Teazer”.
O “Teazer” interpretava “covers” do Led Zeppelin e Black Sabbath, além claro de algumas composições próprias. Durante uma apresentação em Nova Iorque, Don Stroh impressionado com o talento de Mili, convida o músico para um ensaio, e lá ele conhece Chris Risola, James Ward e Jack Wilkinson que propõem a formação de uma nova banda, e com 16 anos de idade, Mili, que agora ficaria conhecido como “Mike Matijevic”, aposenta o Teazer e começa sua nova empreitada como vocalista do “Red Alert”.
ENCONTRO
A nova banda de Mike grava uma fita demo de cinco faixas com o guitarrista Chris Risola, o baixista James Ward e o baterista Jack Wilkinson, posteriormente entra ainda o guitarrista Frank Dicostanzo. Na divulgação da demo muitas pessoas ficam impressionadas com o registro vocal de Mike, que sem o recurso do “falsetto” (registro vocal por meio da qual o cantor emite, de modo controlado, não natural, por isso “falso”, sons mais agudos ou mais graves que os da sua faixa de frequência acústica natural), consegue um alcance agudo que oscila entre C2-D6, o que para um interprete masculino é muito difícil. A voz de Mike somado as composições do grupo logo chamam a atenção da “Music Corporation of America” (MCA) que oferece para banda um contrato.
Com um contrato nas mãos e um mundo para desbravar, Mike decide abandonar a faculdade de engenharia mecânica e se dedica à carreira de cantor. Seu ENCONTRO e destino era com um feiticeiro chamado música, cujo a magia poderei levar o enfeitiçado aos céus com a mesma intensidade que poderia derruba-lo.
Devido a uma patente o “Red Alert” é obrigado a mudar de nome, e a escolha fica por conta de STEELHEART. Não se sabe ao certo a origem do nome, porém de modo onírico gosto de pensar que a escolha foi feita de forma saudosa em homenagem ao desenho SilverHawks de 1986 que tanto confortou as manhãs de Mike na infância. No desenho tinha uma personagem chamada “Steelheart” que junto com seu irmão “Steelwill” tinham seus verdadeiros corações orgânicos substituídos por próteses de aço inoxidável.
Em 1990 é lançado o primeiro álbum autointitulado do Steelheart, e com ele a banda emplaca canções incríveis como “I’ll Never Let You Go” e “She’s Gone”, que de cara são transformadas em clássicos do Hard Rock. Mesmo com uma produção excelente onde Mark Opitz deu aos instrumentais peso e destaque, é impossível não evidenciar a voz de Mike, sua performance foi claramente a responsável pelo diferencial do Steelheart elevando a banda a um outro patamar. O álbum foi um marco para nosso herói vendendo mais de um milhão de cópias, ficando entre os top 100 das charts da Billboard, atingindo o velho continente e Ásia, ficando inclusive em primeiro lugar em vários países deste lado do mundo.
A vida sorria para Mike e sua banda, dinheiro, mulheres, fama e reconhecimento transformavam seus dias em poesias quase que perfeitas, e foi sob este clima agradável e miraculoso que em 1992 a banda decide lançar “Tangled in Reins” o segundo registro do grupo.
O disco mantem o alto nível do debut trazendo canções impares como “Mama Don’t You Cry” e “All your Love” que atingiram de imediato o primeiro lugar em alguns países asiáticos. Tudo indicava que “Tangled in Reins” consolidaria o nome Steelheart, a MTV apresentava incessantemente “Sticky Side Up” em sua programação, as vendas batiam recordes, show em toda parte, inclusive em Hong Kong onde a balada “Mama Don’t You Cry” tornou-se um hit, tudo estava de vento em popa, o céu era o limite para o Steelheart.
CONQUISTA
Muitas vezes as areias do destino são transformadas em lamas quando a chuva do acaso vem para afogar a sorte crescente, através desta ampulheta desfigurada, numa noite de Halloween, Mike se depara com seu maior desafio.
Após uma bem sucedida turnê pela Europa o Steelheart foi convidado para tocar na “McNichols Sports Arena” em Denver no Colorado, ao lado do “Slaughter” (que por sinal também vivia um ótimo momento), foi nesta noite, dia 31 de outubro de 1992, que a bruxa deu as caras para Mike, mudando sua vida para sempre.
O show acontecia perfeitamente, o público composto por mais de 13 mil pessoas estava ensandecido, em meio a empolgação da faixa “Dancing in the Fire” Mike decide escalar umas das torres de iluminação, o problema era que a mesma não estava presa no chão e acabou cedendo…
O frontman ainda conseguiu pular do poste e correr, porém não o suficiente para esquivar da meia tonelada de equipamento que acabou caindo sobre sua cabeça. Mike sofreu traumatismo crânio-encefálico grave, fraturas no arco e osso zigomático, nariz, maxilar inferior e várias roturas na coluna cervical, o que acabou causando 28 pontos, fortes dores de cabeça e perda de memória, era o fim do Steelheart.
Realmente nem tudo na vida são flores, muitas vezes os espinhos acabam não apenas protegendo o caule, mais sim ferindo quem apenas admira seu perfume…
O acidente não levou apenas a memória de Mike, mais sim sua fama, dinheiro, casa, sua credibilidade como artista e até mesmo sua família e amigos. Um dia ouvi uma frase que dizia o seguinte:
“É apenas depois de perder tudo que somos livres para fazer qualquer coisa.”
A meu ver teorias não servem de nada quando a espinha onde o frio percorre não está ligado ao sistema neural do réu, na realidade somente podemos especular a dor da perda sentida por nosso semelhante, ou seja, só Mike pode recitar seus versos futuros, e não nosso otimismo.
https://www.youtube.com/watch?v=j4ofjox5bnk
Quatro anos após o acidente Mike começa a retomar sua vida, sua memória ainda não estava recuperada 100% porém nosso guerreiro do coração de aço não se deixou abater, trouxe o Steelheart a vida novamente e para a retomada grava em 1996 o álbum “Wait” que apesar de não flertar com os discos antecessores da banda, conseguiu o primeiro lugar em diversos países do oriente. Durante o processo de mixagem Mike simplesmente “desperta”, toda sequela do acidente foram diluídas junto aos acordes de “We All Die Young”, sua memória estava totalmente recuperada, não havia mais demônios em sua mente, tudo era claro como antes.
“Muitas boas lembranças foram apagadas da minha memória. Fiquei numa espécie de transe contínuo por três anos. Às vezes me pegava no meio da noite, dirigindo sem destino, sem saber o porquê daquilo… Ninguém me compreendia, a não ser eu mesmo … Fui diagnosticado com lesão cerebral traumática e tive de reaprender concentração, foco e a reprogramar a mente…”. (Miljenko Matijevic)
CELEBRAÇÃO
Nosso pequeno Mili que para entrar no mercado americano mudou seu nome para “Mike”, exorciza todos seus medos e receios e opta por assumir profissionalmente seu nome de batismo, Miljenko Matijevic. E foi com este epiteto que no ano 2000 recebeu uma ligação de Tom Werman (produtor de vários álbuns clássicos do Hard Rock e também de Tangled in Reins), que faz uma excelente proposta ao vocalista: “Estou trabalhando em um filme, ‘Metal God’, e acho que você é o cara certo pra ele. Você topa fazer um teste?”.
Mili embarca para Los Angeles, faz o teste e é aprovado. Os produtores ainda se interessam por uma faixa em particular de “Wait”, “We All Die Young”. O filme contaria a história da ida de Tim “Ripper” Owens para o Judas Priest, porém a banda não aprovou o roteiro e a película passou a se chamar “Rock Star”.
O filme foi dirigido por Stephen Herek e protagonizado por Mark Wahlberg e Jennifer Aniston. Mili registra os vocais dublados por Mark Wahlberg e a faixa “We All Die Young” foi refeita com a ajuda de Zakk Wylde, Jeff Pilson e Jason Bonham (que também contracenaram no filme), e é usada como tema principal da trama.
Mili estava de volta com força total, participando de programas de TV, rádio e aumentando o número de shows do Steelheart. Fora os trabalhos extra como por exemplo o projeto Manzarek-Krieger, formado pelos ex-The Doors Ray Manzarek e Robbie Krieger onde Matijevic foi o vocalista durante duas turnês.
Mesmo reconquistando a popularidade e o respeito artístico, Mili não conseguiu reunir novamente a formação clássica do Steelheart, Wait por exemplo foi gravado com Kenny Kanowski, Vincent Melle e Alex Macarovich. Toda guerra tem suas perdas, a não reunião do Steelheart foi sua cicatriz, principalmente depois da morte do baterista John Fowler.
Em 2008 mais um trabalho do Steelheart conheceu a luz do dia, Good 2B Alive. O disco foi muito bem recebido principalmente pelo sentimento nostálgico, que somado ao trabalho feito em Rock Stars colocou mais uma vez o Steelheart nos trilhos do Hard Rock mundial.
E assim termina (até então) a história de “Mili, o guerreiro do coração de aço” que mesmo com muitos percalços conseguiu superar seus limites provando que na vida nem sempre o fel tem de ser a resposta para nossa tristeza. Mais antes do ponto final deste texto gostaria de citar um momento peculiar envolvendo o steelheart:
O ano era 2013, o local Jakarta na Indonésia, em uma noite onde as sombras eram confundidas com sentimentos antigos, o palco principal do festival Java Rockin’land recebe uma figura conhecida dos fãs do Steelheart”, era Chris Risola guitarrista da formação clássica da banda, e de forma quase que poética Risola dá os primeiros acordes da canção“She’s Gone…
O público logo começa a procurar por Mili no palco, porém sem sucesso. Foi então que uma movimentação no o meio da plateia começa a chamar a atenção, era Mili!
Com os braços abertos num momento quase que mediúnico, Mili mostra aos presentes que: Tudo que é verdadeiro, jamais terá fim…
https://www.youtube.com/watch?v=fB6phu_I-Ms
Considerações finais:
Recentemente o selo Frontiers Records anunciou que será responsável pelo lançamento e distribuição de um novo álbum do Steelheart. Mesmo sem um nome definido, o álbum será lançado neste ano(2017), Miljenko Matijevic afirma que tem 41 músicas prontas para esse novo trabalho.
Resta agora adquirir um pacote do café Steelheart lançado por Matijevic, e aguardar esse lançamento que tem tudo para ser espetacular, principalmente se comparado a última composição do vocalista “My love is gone”.
Café Steelheart: