“O que está acontecendo aqui?” Frases equivalentes a essa provavelmente passam pela cabeça de todos aqueles que ouvem Seu Juvenal pela primeira vez – e em todas as outras vezes também. Quando estamos acostumados a ouvir música e analisá-las (mesmo sem perceber, no caso dos resenhistas “não-oficiais”), sempre buscamos algum ponto de apoio, alguma referência que sirva de norte para a bússola da compreensão. Afinal, todos estamos acostumados com determinados padrões estruturais e ideais. Mas o que fazer quando uma banda rompe todas as referências e faz Rock do jeito “errado”? É o desafio que o quarteto do Seu Juvenal lança para todo ouvinte disposto a esmiuçar as camadas de sua musicalidade irreverente, anti-padronizada, anti-refinada, politicamente incorreta, entre outros ‘antis’ e ‘ins’.
~> Texto originalmente publicado no Warriors Of The Metal.
Essa aventura musical não se restringe apenas àquele que ouve, mas se estende àqueles que a elaboram também. De musicalidade imprevisível, o conjunto mineiro atualmente composto por Bruno Bastos (vocal), Edson Zacca (guitarra e violão), Alexandre Tito (baixo) e Renato Zaca (bateria) recolhe diversos elementos de muitos estilos musicais, destila no Rock (sobretudo o Punk, em especial nos primeiros discos) e simplesmente sai do comum – isso em toda a discografia. Não é uma tarefa fácil, mas ela é feita desde 1997, quando a banda foi fundada em Uberaba sob o nome de Os Donátilas Rosários. Na época, havia certa dificuldade de “integração”, ocasionada tanto pelo nome esquisito quanto pelo estilo esquisito. A carência de convites para shows levou a banda a logo mudar de nome, mas sem deixar toda sua essência excêntrica de lado. Foi quando passaram a ser conhecidos como Seu Juvenal, e os lançamentos começaram a tomar forma.
O primeiro deles foi a demo “Cyberjecas No Sertão da Farinha Podre”, que foi gravada em São Paulo e produzida por Rainer Tanked Pappon (Centra Scrutinizer Band), e saiu já em 1998. O cartão de visitas demonstrativo trouxe evidência à banda, que passou a – aí sim – fazer mais shows e tocar em festivais, além de participar em coletâneas.
Passando o tempo, novas composições surgiam, até que o primeiro álbum de estúdio foi lançado em 2004, intitulado “Guitarra de Pau Seco”. O desafio já começa mesmo cedo. Talvez se ele não tivesse determinados elementos-surpresa, seria só mais um disco de Punk Rock no mercado. Mas não é o que temos aqui: despreparado, você se depara com determinadas inserções que o deixam pasmo e o faz se perguntar o que aquele som está fazendo ali – mas incrivelmente, não é uma indagação negativa, e sim positivamente impressionada.
Pois é, o trabalho é basicamente calcado no Punk Rock, mas essa é só uma massa que leva um recheio variado, numa organizada e lúcida gororoba de bom gosto que beira a psicodelia. Logo de início há surpresa com a aparição de trompetes na sonoridade da cadenciada e tropical “Guerrilha Cultural”, faixa de abertura do disco, que inclusive conta com batuques tribais. Os trompetes aparecem em outras faixas mais adiante, como na sacana “Filhos de Seu Juvenal” (que tem um clima bem mexicano) e na reflexiva “Teclas Dentadas”. As surpresas não ficam apenas por isso, mas também em detalhes que poderiam até passar batidos, sem indagação, como logo na segunda faixa, “Aquela Canção”, quando o vocalista insere um grito rasgado e sofrido totalmente inesperado para o ameno andamento da canção. É inesperada também a sensação de que ficou legal!
Quase todo Punk tem sua bela dose de ironia, algo que o faça rir, seja lírica ou instrumentalmente. Pode ter certeza que ficará boquiaberto se perguntando “que porra é essa?” quando “Toninho da Viola” iniciar com seu energético e empolgado Modão do sertão nordestino, que logo se converte em riffs de guitarra e na pegada do Punk tradicional, até que se encerra da mesma forma como começou. Bem sacado demais, cara! Certamente a faixa mais deslocada é “Carta Ao Manipulado”, onde um crítico Rap é executado com direito até a flautas na base instrumental.
Embora as atipicidades sejam muitas nesse excelente e divertido disco, o bom e velho Punk não fica de fora. Ele aparece com força em faixas como “Olhos Cortados”, “U.S.A.” (onde o estilo ganha sua forma mais tradicionalíssima, com críticas ao sistema e adornos em coros de backing vocals), “A Resposta” (intercalada com “U.S.A”, ela traz 33 segundos de pura agressividade Punk) e “Indigestão”.
O álbum é encerrado com duas faixas que mantêm o ouvinte consternado: “Clitóris Canibais”, de nove minutos de duração – muito incomum pro Punk – e letra doentia e pervertida, e por fim “Uberaba Tribal Mix”, que traz batuques à lá Les Tambours du Bronx e encerra num clima atmosférico e brisante, fazendo contraponto com a musicalidade mais pegada que transcorreu ao longo do disco.
“Guitarra de Pau Seco” foi um fantástico debut, e isso é fácil de ser reconhecido quando se compreende a proposta de rompimento da banda.
Apenas quatro anos mais tarde chegou o segundo álbum. “Caixa Preta” foi lançado em 2008 e, ao contrário de seu antecessor – que tinha 43 minutos totais de duração -, ele tem duração total reduzida (27 minutos), característica talvez provocada pela inspiração ainda mais submergida no Punk Rock. A produção não é das melhores – isso levando em conta que a do debut também não era excepcional -, mas não denigre tanto a audição de um disco que não se mostra tão atrevido criativamente quanto “Guitarra de Pau Seco”.
Nesse álbum, não vemos uma aventura por elementos extras ou grandes surpresas que o deixam caduco. É um trabalho mais seco, pesado, centrado e melhor trabalhado dentro do que o próprio Rock tem a oferecer, porém, isso não faz do álbum ruim, apenas menos imprevisível.
Aqui os caras se afundam de vez no Punk Rock e também se esbanjam em influências roqueiras mais diversas, muitas vezes ultrapassando a fronteira e desbravando o território do Metal, inclusive. Vide faixas como “Atro”, que flerta com o Heavy Metal ou “O Criador e A Criatura”, cujos riffs sabáticos e escaramuçadores aludem ao Stoner Metal. No entanto, também vê-se elementos de Hardcore e psicodelia como em “Passarins”. Talvez a coisa mais linda e surpreendente desse disco seja o Rockabilly executado na sugestiva “Nóiabilly”, que é instrumental, e o estilo segue perfeitamente destilado em meio ao Punk Rock na faixa seguinte, “Carne Viva”.
Entre os diversos compassos e andamentos adotados na execução do Punk, o mais pegado e tradicional certamente é o exposto em “Via Láctea”, bem como, de certa forma, na canção “Coroné Belzebu”, que fecha o disco com uma torrente de referências instrumentais ao Rage Against The Machine.
Se o vocal de Bruno Bastos era limpo, comportado e assentado na zona de conforto, saindo dela com raras exceções no debut, o mesmo não acontece aqui. As músicas se tornaram mais agressivas e pesadas, e a voz seguiu a tendência. Frequentemente o intérprete aposta em vocais rasgados em drive, além de demonstrar muito mais entrega no ofício.
Nos tempos que se seguiram, a banda se sentia desconfortável e queria melhorar ainda mais. Foi quando se mudaram para Ouro Preto (MG), e começaram, com muita calma, a trabalhar no terceiro álbum de estúdio.
Demorou bastante, mas ele chegou e com muito estilo. Lançado exclusivamente em LP pela Sapólio Rádio e distribuído pela Som do Darma, “Rock Errado” saiu em 2014 resgatando a essência criativa da banda. É um disco inspirado, ainda mais insano e, como o nome sugere, bastante “errado”, indo na contramão de qualquer tendência e fugindo de padrões, inclusive internos do Rock.
Gravado em incríveis quatro dias no Lab.áudio, em Passagem de Mariana (MG) e produzido por Ronaldo Gino (guitarrista do Virna Lisi), o álbum é maduro, perspicaz e brilhantemente sutil em sua arquitetura e referências.
“Rock Errado” é carregado por uma notável atmosfera setentista, cheia de psicodelia – um retrô que soa também moderno devido à bela produção. É um disco difícil, já que suas referências não são escancaradas, mas misturadas em meio à própria personalidade da banda e se manifestam em lampejos mistos. A base continua Punk Rock, mas com menos incidência em relação aos álbuns anteriores, o que abre espaço para que outros estilos também ganhem destaque, como o Indie, o Grunge, algo de Hard Rock e até mesmo o Stoner Metal, mas tudo sem soar pesado demais, mantendo constância e coerência.
Algumas músicas expõem com mais evidência as referências setentistas, tais como “Homem Analógico”, “Free Ordinária” e a faixa-título (que inclusive conta com a participação do vocalista Manu “Joker”, do Uganga), cujas influências são declaradamente de bandas como New York Dolls e Free. Porém, a coisa se atualiza também com as referências ao Rock e Metal em faixas como “Asfalto”, “Um Dia de Fúria” (que também tem algo de Grunge) e “Louva-A-Deus”, um fantástico Stoner Metal instrumental. Fora, também, o obrigatório Punk Rock, presente em faixas como “Antropofagia Disfarçada” e na própria faixa-título, que a tem também.
A banda tem mania de encerrar muito bem seus álbuns, em especial nas duas últimas faixas. Essa característica é preservada aqui: a penúltima, “A Chuva Não Cai”, é climática e levada a brisantes pianos num andamento bem balado, algo raramente praticado pelos caras. O álbum é então encerrado com “Burca”, que até a metade de seus seis minutos puxa os pianos da antecessora até que se transforma em uma frenética porradaria com destaque para a bateria, que é destruidora, e o contra-baixo, que tem linda performance ao longo de todo o álbum.
Trata-se de um disco complexo, mas também fácil de ouvir e gostar. É maduro em todos os aspectos, inclusive nos vocais de Bruno, que estão absolutamente à vontade, seguros. O “Rock Errado” é correto e ousado.
O nome de uma banda é também seu cartão postal; há de se tomar cuidado com isso. Embora ter um nome insano faça todo sentido para uma banda desse calibre, ele ainda pode provocar desconfiança, especialmente pra quem só ouve Metal. Mas não tenha receio; é diferente, mas coerente, algo muitas vezes em falta na música atual. Rock atípico para ouvidos atípicos.
Formação:
Bruno Bastos (vocal);
Edson Zacca (guitarra e violão);
Alexandre Tito (baixo);
Renato Zaca (bateria).
Discografia:
Guitarra de Pau Seco (2004)
01 – Guerrilha Cultural
02 – Aquela Canção
03 – Olhos Cortados
04 – Toninho da Viola
05 – Filhos de Seu Juvenal
06 – Carta Ao Manipulado
07 – U.S.A.
08 – A Resposta
09 – Teclas Dentadas
10 – Indigestão
11 – Clitóris Canibais
12 – Uberaba Tribal Mix
Caixa Preta (2008)
01 – Passarins
02 – Filhos da Putrefação
03 – Atro
04 – O Criador e A Criatura
05 – A Espera
06 – Nóiabilly
07 – Carne Viva
08 – Via Láctea
09 – Coroné Belzebu
Rock Errado (2014)
01 – Homem Analógico
02 – Free Ordinária
03 – Antropofagia Disfarçada
04 – Asfalto
05 – Louva-A-Deus
06 – Um Dia de Fúria
07 – Rock Errado
08 – Moleque Dissonante
09 – A Chuva Não Cai
10 – Burca
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