Há certas bandas no cenário metálico cujo conteúdo é tão rico e interessante que o interesse sobre o trabalho dos músicos vai além do contexto musical. O Miasthenia é um exemplo de coerência, trabalho e talento em prol da música pesada em 22 anos de competente trajetória, apresentando uma rica temática sobre a mitologia pagã sulamericana, Tupinambá e as guerras entre a cultura cristã e pagãs. A Roadie Metal surgiu com o intuito de ser um espaço que valoriza a qualidade e o conteúdo na cena musical, por isso fomos ter um papo com a vocalista, tecladista e fundadora Hécate para falar sobre os novos rumos do Miasthenia; em uma das entrevista de conteúdo mais rico que realizamos até o momento.
Roadie Metal: O Miasthenia surgiu em 1994 na cena com uma proposta diferenciada, abordando uma temática voltada para o paganismo pré-colombiano, guerras de conquista da América no século XVI e atitudes anti-cristãs. Como foi adaptar este rico conteúdo à música da banda?
Hécate: Desde o início a nossa proposta era mesmo de cantar em português e tratar de temas ligados ao paganismo antigo e ao processo de demonização de crenças, práticas e pensamentos pagãos. As demos (de 1995 e 1998) refletem nossos passos iniciais até a gravação do nosso primeiro álbum “XVI” (2000), onde finalmente conseguimos, após muito tempo de estudo e dedicação, abordar em nossas letras temas de paganismo sulamericano, especialmente pré-colonial. Os álbuns seguintes vêm seguindo esse processo que requer estudos, já que estes temas não fazem parte de nossa cultura história difundida nas escolas brasileiras. Nossa música nasce inspirada nestes temas.
Roadie Metal: Este redator se lembra que quando tomou contato com a temática do Miasthenia nessa época, imediatamente procurou conhecer as letras e pesquisar mais sobre temática. Acho que é exatamente essa reação que vocês queriam despertar desde o começo, não?
Hécate: Exatamente. Sou professora de História e me preocupo com a educação histórica referente às culturas ameríndias e ao processo de colonização e evangelização da América que destruiu e demonizou tudo o que era diferente e que colocava em risco os pilares da cristandade e o exercício colonial de domesticação/escravidão/exploração de nossas terras e povos. Gostamos de difundir, de forma poética, aquilo que se perdeu e que ainda resiste, fundamental para a construção de outras visões sobre a conquista/colonização e o protagonismo indígena na América, como as crenças e cosmo-histórias dos antigos maias sobre a morte, tratadas no álbum Legados do Inframundo (2014); como as diversas seitas e movimentos indígenas de resistência à cristianização e colonização, tratadas no Supremacia Ancestral (2008); como os rituais antropofágicos dos tupinambás, tratados no “Batalha Ritual” e como os antigos reinos e histórias de conquista, tratados no XVI (2000).
Roadie Metal: Quando você formou a banda, você tocava guitarra e depois passou para os teclados, além de assumir todos os vocais. Fale-nos sobre essa mudança para você como música.
Hécate: Minha iniciação musical foi com o piano, aos 11 anos de idade. Depois me interessei por contrabaixo e guitarra aos 16 anos. Na primeira demo (“Para O Encanto do Sabbat”, de 1995) eu toco guitarra. Já na segunda (“Faun”, de 1998), eu toco baixo, teclado e canto. Meu interesse era mesmo continuar como guitarrista, mas as circunstância acabaram me conduzindo ao teclado, porque eu fui inventar de acrescentar linhas de teclado que se tornaram fundamentais às música da demo “Faun” e depois não conseguíamos encontrar um bom tecladista para shows. Com isso eu assumi os teclados e inteiramente os vocais, com a saída de um dos integrantes, e a partir daí as músicas dos dois álbuns seguintes foram compostas inicialmente no teclado e depois trabalhadas/transformadas com os outros instrumentos. Todo esse processo foi mesmo desafiador para mim.
Roadie Metal: Você acredita que tenham chegado à formação ideal com a efetivação de Thormianak (guitarras) e V. Digger (bateria)? O que eles trouxeram ao som do Miasthenia?
Hécate: Thormianak está na banda desde 1999, quando compomos o primeiro álbum. Ele só não participou das demos, então a sua presença foi fundamental na construção de uma identidade sonora do Miasthenia. V. Digger entrou em 2012 e já participou da composição e gravou o nosso último álbum. Ele trouxe, com sua “pegada mais extrema” na bateria, mais energia e peso ao Miasthenia, completando o trio que agora define a banda na atualidade.
Roadie Metal: Seus três primeiros álbuns “XVI”, “Batalha Ritual” e “Supremacia Ancestral” foram lançados pela Somber Music. Fale-nos um pouco sobre a experiência de cada trabalho e como eles sedimentaram o estilo da banda?
Hécate: A cada álbum tentamos superar em termos de qualidade de gravação e também de profundidade temática. “XVI” foi gravado com muitas dificuldades e pouquíssimos recursos financeiros. Tem suas falhas, mas nos orgulhamos muito das composições. Foi o início de tudo; já o “Batalha Ritual” ganhou uma qualidade melhor, mas não ficamos satisfeitos com os resultados da gravação. O processo foi muito conturbado e gravamos fora de Brasília; depois o “Supremacia Ancestral” teve um processo bastante complicado, já que contamos com o apoio do Hamon (baterista do Mythological Cold Towers) na composição e gravação do álbum. Os resultados de gravação e mixagem do “Supremacia”, produzidos no BroadBand Studio com Caio Duarte, já nos deixaram um pouco mais motivados para investir no próximo. Por fim o processo de produção do “Legados do Inframundo” foi mais tranquilo, porque após todos estes anos de trabalho, estávamos mais maduros, experientes e em condições financeiras de executar um bom projeto de gravação. A cada álbum ganhamos experiência, mas sempre achamos que algo estava faltando, não ficamos 100% satisfeitos, e creio que por isso ainda continuamos.
Roadie Metal: Por que, após estes trabalhos, a banda deixou a Somber Music?
Hécate: Ela não estava mais produzindo nenhum resultado positivo em termos de divulgação e difusão da banda, e as relações entre a banda e gravadora estavam cada vez mais obscuras, já que nunca tivemos a informação exata de quantos CDs foram vendidos aqui ou no exterior. Apenas ouvíamos a constante afirmação de que “banda nacional não vende”, o que parecia querer nos desmotivar, mas como isso não é o que de fato vem movendo o Miasthenia continuamos em frente, e buscamos outros apoios.
Roadie Metal: Ainda sobre o álbum “Supremacia Ancestral”, ele é conceitual sobre os movimentos e seitas ameríndias de resistência pagã à inquisição e catequização na América colonial. Nesse aspecto, a banda pode ser considerada uma precursora do “Movimento Levante do Metal Nativo”, que visa valorizar nossa cultura. Conhece o movimento? O que mais chama a sua atenção na questão da perda progressiva de nossa cultura nativa?
Hécate: Talvez. Depende do sentido deste movimento, porque até o lançamento deste álbum em 2008 eu não conheço nenhum outro no Brasil que tenha tratado de resistência ameríndia. Já vi algo sobre este movimento “Levante do Metal Nativo” e o considero extremamente importante e interessante. O Miasthenia pode se inserir nesta perspectiva também. A cultura nativa no Brasil é muito plural. Uma parte foi dizimada, outra transformada e uma boa parte ainda hoje resiste e essa existência é fundamental para revelar a resistência ao colonialismo e evangelização da América, para revelar a possibilidade de existência da diversidade étnico-cultural no Brasil. Isso consideramos muito importante e politicamente apoiamos estas manifestações “descoloniais” que difundem pensamentos e práticas não cristãs que vão além do eurocentrismo.
Roadie Metal: Como foi a mudança de vocês para a Mutilation Records e por que a escolheram?
Hécate: Nós tivemos o apoio da Mutilation para o lançamento do DVD (bootleg “O Ritual da Rebelião”) e do CD “Legados do Inframundo” em parceria com a Misanthropic Records, que trouxe bons resultados. Mas continuamos em busca de novos apoios, sempre pensando em difundir cada vez mais nossa música. Nesse processo, já contamos com o apoio da Drakkar Productions (França) no relançamento (2016) do “Legados do Inframundo” em versão digipack e com letras traduzidas para o inglês.
Roadie Metal: Fale-nos sobre este primeiro lançamento da banda em DVD com o novo selo.
Hécate: Esse DVD é uma espécie de memorial dos shows do Miasthenia. Foi editado por Caio Duarte e trouxe apresentações ao vivo realizadas em diversas cidades do Brasil (Campo Grande, Cuiabá, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Jundiaí, Belo Horizonte, entre outras) durante os anos de 2000 até 2010, e mostra de forma fiel como são os shows underground no Brasil, gravados em câmeras de vídeo comuns, sem edição de áudio. É apenas um registro histórico e underground da banda.
Roadie Metal: Nesta trajetória, por quais países o Miasthenia excursionou e que lugares mais gostaram de ter se apresentado?
Hécate: O Miasthenia ainda não se apresentou fora do Brasil. Mas todos os seus membros (eu, Thormianak e V. Digger) já tocamos na Europa como membros de apoio a outras bandas. Em 2012, eu e Thormianak tocamos no Mythological Cold Towers em sua turnê pela Europa. Gostamos muito de tocar no Barroselas MetalFest em Portugal e no Doom Day em Dordrecht na Holanda! A experiência foi fantástica e vivenciamos todas as dificuldades de um turnê underground pela Europa, por isso estamos sempre avaliando as possibilidade de levar o Miasthenia. Estamos aguardando o momento certo e as condições que consideramos ideais, porque não nada fácil, é preciso se dispor muito tempo, dinheiro e saúde para viajar com uma banda pelo Velho Continente.
Roadie Metal: Hécate, falemos agora sobre sua performance musical. Percebe-se na musicalidade que você conseguiu um equilíbrio muito interessante ao encaixar as letras em português à atmosfera musical. Você se sente mais à vontade para expressar os sentimentos da música cantando em nossa língua?
Hécate: Com certeza, apesar de ser muito mais difícil e trabalhoso o processo de encaixe de vocal, já que estamos muito mais acostumados em ouvir Metal extremo com letras em inglês! É preciso ter uma atenção maior com as rimas e pronúncias das palavras para não sair truncado.
Roadie Metal: Na parte vocal também percebe-se um equilíbrio bem dosado de sua voz que não soa forçada e casa perfeitamente com a sonoridade.
Hécate: Obrigada! Desde 1994 me dedico ao vocal extremo, quando ainda era raro e praticamente inexistente mulheres vocalistas no Metal. Me esforço para cantar do meu jeito, com minha personalidade. Não tenho a intenção de imitar fielmente outros vocalistas.
Roadie Metal: O trabalho de teclados também é bastante rico e acrescenta muito a sonoridade do Miasthenia. Percebe-se que você tem uma preocupação na escolha certa de timbres.
Hécate: Obrigada mais uma vez! A cada álbum sempre busco aprimorar e buscar novas tecnologias para os sons de teclado.
Roadie Metal: Quais são suas principais influências na parte vocal e nos teclados?
Hécate: Talvez não influências, mas me inspiram vocalistas como Vorphalack (Samael), Jeffrey Walker (Carcass), John Tardy (Obituary) e Abbath (Immortal), e tecladistas como Xytras (Samael) e Kasper Mårtenson (de “Tales From The Thousand Lakes”, do Amorphis) e trilhas sonoras épicas de Hans Zimmer.
Roadie Metal: Fale-nos um pouco sobre o processo de composição do Miasthenia.
Hécate: Nos dois primeiros álbuns, as composições partiam basicamente do teclado para depois encaixe e transformação junto aos outros instrumentos. No “Supremacia Ancestral”, dividi esse processo com Thormianak. Metade das composições partiram da guitarra. Já no “Legados do Inframundo”, a maior parte das composições partiram especialmente da guitarra. Primeiro, eu e Thormianak nos reunimos para fechar um conceito inspirador para o álbum, uma temática geral, e ensaiamos juntos apenas guitarra e teclado. Nesse processo, um instrumento acaba inspirando o outro e a música vai se delineando. Em seguida vamos para ensaio em estúdio para compor e encaixar as bateras, realizamos vários ensaios instrumentais, sem vocal, porque preciso primeiro aprimorar as linhas de teclados. Enquanto isso, vou escrevendo estudando e escrevendo as letras, inspirada no instrumental. Depois que definimos a parte instrumental é que partimos para a inclusão do vocal, daí realizamos mais alguns ensaios para aprimorar as composições, e por fim iniciamos as gravações.
Roadie Metal: O Miasthenia foi uma banda que viveu a transição e disseminação das mídias MP3. Como vocês se adaptaram a um mercado onde as bandas vendem menos material físico?
Hécate: O Miasthenia nunca foi uma banda de mercado, então esse processo não nos afetou negativamente – muito pelo contrário, graças à disseminação do MP3 e de vídeos no YouTube, conseguimos expandir um pouco mais o nosso público e vender mais CDs.
Roadie Metal: Em 2014, a banda lançou “Legados do Inframundo”. Você acredita que a banda conseguiu alcançar plenamente seus objetivos musicais com este álbum? Conte-nos sobre o processo de gravação deste trabalho.
Hécate: Nunca estamos 100% satisfeitos com os resultados. O processo de gravação foi tranquilo. Caio Duarte (produtor) é muito profissional e entende bem nossa proposta. Está sempre nos tratando com muito respeito, e isso foi fundamental.
Roadie Metal: Como foi a resposta do público de vocês a este lançamento?
Hécate: Foi bem positiva e surpreendente! Com esse álbum, a banda teve um alcance maior em difusão e público, embora underground.
Roadie Metal: No ano passado, a gravadora francesa Drakkar lançou uma versão digipack de “Legados do Inframundo”. Como se deu este contato de vocês? A banda pretende expandir mais sua atuação fora do Brasil?
Hécate: Havíamos enviado nosso material para algumas gravadoras europeias em busca de um relançamento no exterior e eles nos responderam prontamente revelando interesse no lançamento de um novo álbum e também no relançamento do “Legados do Inframundo”. Eles têm uma subdivisão no Brasil, o que facilitou o contato. Gostamos do modo como trabalham e vem sendo muito positivo para a banda, especialmente para difusão no exterior.
Roadie Metal: Vocês foram um dos destaques no DVD “Território Metálico”. Como vocês receberam este convite e quais suas impressões deste trabalho?
Hécate: O Território Metálico é resultado de um projeto de integrantes da banda Moretools, que contou com o apoio da Secretaria de Cultura do Distrito Federal. Eles nos convidaram logo início, quando construíram o projeto e concorreram ao edital. Demorou anos para aprovação do projeto, mas continuamos firme com eles na proposta e os resultados foram ótimos! Ficou aí um registro histórico fantástico de grandes bandas de Metal Extremo do DF.
Roadie Metal: A Roadie Metal agradece imensamente ao Miasthenia por sua atenção! Diga quais os planos do Miasthenia para 2016 e deixem um recado para nossos leitores e ouvintes!
Hécate: Nós agradecemos imensamente o apoio e interesse da Roadie Metal no Miasthenia e desejamos-lhes vida longa e muito sucesso na cena! Estamos trabalhando nas composições de uma novo álbum conceitual. A parte instrumental já está 80% pronta! Estou agora iniciando os encaixes de voz e seguimos ensaiando. Em abril iniciaremos o processo de gravação. Continuem nos apoiando! Força e honra sempre!
Formação:
Hécate (vocais e teclados);
Thormianak (guitarras);
V. Digger (bateria).
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E-mail: miasthenia.horda@gmail.com