Antes de tratarmos acerca do álbum The Wall em si, tracemos nosso caminho na linha do tempo uns dois anos antes do lançamento do mesmo. O Pink Floyd estava em turnê promovendo seu mais recente lançamento, o álbum Animals. Apesar de, comercialmente falando, este álbum não ter sido tão bem-sucedido quanto seus dois antecessores, o grupo conseguiu promover uma turnê por arenas sempre lotadas, que percorreu a Europa e a América do Norte. Ainda assim, diante do sucesso da turnê, tensões emergiram em meio aos músicos contra a audiência dos shows.
“Eu odiei!”, declarou o baixista Roger Waters em entrevista ao programa Radio Times em 1990. “Aquilo se tornou mais um evento social do que mesmo uma relação controlada e ordinária entre músicos e público. As primeiras sessenta fileiras somente gritavam e se balançavam ao invés de aproveitarem as músicas. E quem estava dali para trás não via quase nada.”
Frequentemente Waters se irritava com o exaltado público naqueles shows. O ápice de toda esta situação foi no dia 06 de julho de 1977, no show no Estádio Olímpico de Montreal, no Canadá. As fileiras mais próximas ao palco estavam tão excitadas e agitadas que um encolerizado Waters cuspiu na cara de um dos espectadores que por lá estavam, abandonando o palco logo em seguida. O baixista foi logo seguido pelo guitarrista David Gilmour, que de tão irritado, também se recusou a tocar as músicas do bis. O guitarrista de apoio Snowy White precisou improvisar um solo no dito bis que ficou conhecido como Drift Away Blues. Ainda naquela noite, Waters se encontrava dentro de um carro acompanhado do lendário produtor Bob Ezrin, logo após o baixista voltar de um hospital com o pé imobilizado por conta de uma briga com seu tour-manager. Waters declarou que estava tão saturado daquela situação que, se pudesse, construiria UM MURO que separasse o palco do público durante os concertos.
O conceito do álbum seguinte nascera ali. E Bob Ezrin seria fundamental em seu desenvolvimento.
Enquanto Gilmour, o tecladista Richard Wrigth e o baterista Nick Mason estavam ocupados em seus projetos paralelos, Waters, que na época quase monopolizava as composições da banda, começava a desenvolver o conceito de The Wall. O protagonista, Pink, era inspirado no próprio Waters e também no antigo líder da banda, Syd Barrett. Pink cedo se tornou órfão de pai, que era combatente na Segunda Guerra Mundial. Sua mãe super-protetora e seus professores tiranos e abusivos foram os primeiros “tijolos do muro psicológico” de Pink. Com o passar do tempo, Pink se torna um astro do Rock. Seu casamento infeliz, repleto de brigas, infidelidade e abusos, só pioram seu estado mental. Vendo seu casamento ir por água abaixo, em um de seus shows o músico inicia um relacionamento com uma groupie, a quem ele afasta violentamente um tempo depois. Após este incidente, Pink conclui a construção de seu muro e se isola completamente das outras pessoas, a quem ele se refere simplesmente como “tijolos”.
Completamente isolado por trás de seu muro, Pink se torna uma pessoa depressiva e sem esperança de nada. Para que ele continuasse a se apresentar em shows, um psiquiatra o remedia com um medicamento que na verdade era um alucinógeno. Pink volta a se apresentar ao vivo, mas as alucinações decorrentes do medicamento o fazem pensar que ele é uma espécie de líder neo-nazista. Aos poucos retornando a sua realidade, Pink começa a perceber todos os males que o mesmo causou, o que faz surgir nele um forte sentimento de culpa. Como que em uma reunião consigo mesmo dentro de sua mente, Pink decide que é hora de derrubar seu muro e voltar ao convívio social.
Alguns traços da personalidade de Pink vieram das reais experiências passadas por Syd Barrett, enquanto os fatos de ter perdido o pai na Segunda Guerra e o tratamento com medicação (abordado na faixa Confortably Numb) foram realmente experimentados por Roger Waters. Coube a Bob Ezrin e aos demais integrantes da banda fazerem algumas adaptações no enredo original, que mais se parecia com as histórias verdadeiras de Waters e de Barrett. Enredo aprovado, era hora de arregaçar as mangas e preparar a trilha sonora. Todavia, novas tensões surgiram durante as gravações de The Wall, em especial envolvendo o tecladista Richard Wrigth.
Como aquela seria a primeira vez que o Pink Floyd usaria um produtor externo nas gravações de um álbum, Wright ficou deveras preocupado com a forma que Bob Ezrin influenciaria no direcionamento de The Wall. O próprio Wright tomou as rédeas da produção em seus primeiros dias, mas sua conduta desagradou fortemente Waters, Ezrin e mesmo David Gilmour. Insatisfeito, Wright só aparecia para gravar suas partes a noite, longe dos demais e somente com a companhia do engenheiro de som James Guthrie. Debaixo de várias versões, o que se sabe é que Wright pouco contribuía nas gravações do álbum e que Waters o queria fora da banda. Gilmour então entrou em ação ao lado de Wright, mesmo sabendo que de fato o tecladista não estava contribuindo como poderia. Waters deu o ultimato: ou Wright saia da banda ou ele se recusaria a lançar The Wall. O tecladista cumpriu a primeira opção. Curiosamente, Wright foi contratado para servir de tecladista de apoio durante a turnê subsequente.
Depois de todas as tensões e desgastes entre os envolvidos, The Wall finalmente é lançado em 30 de novembro de 1979 pela Harvest Records na Europa e pela Columbia nos Estados Unidos. A simplória arte de capa foi elaborada por Gerald Scarfe e, originalmente, traz somente segmentos de reta perpendiculares criando a forma de um muro cor de creme (não branco!). A inscrição a tinta com o nome da banda e do álbum aparecia numa espécia de sobre-capa. A princípio, The Wall rendeu críticas divergentes entre a imprensa especializada da época. Mas o tempo tratou de elevar o disco ao patamar de um dos maiores e mais bem-sucedidos da história da música. The Wall permaneceu durante 15 semanas no topo das paradas da Billboard, na época em que tal parâmetro realmente indicava sucesso comercial. Até a data de hoje, The Wall já vendeu mais de 30 milhões de cópias, angariando assim o posto de segundo álbum de maior sucesso comercial do Pink Floyd, perdendo apenas para The Dark Side Of The Moon, que já ultrapassou a colossal marca de 50 milhões de cópias vendidas e que é o terceiro álbum mais vendido da história da música. O disco ainda renderia ao engenheiro de som James Guthrie um Grammy.
Musicalmente falando, The Wall mostra um Pink Floyd ainda mais comercial, mas sem deixar de lado sua faceta psicodélica e progressiva. Um álbum ora alegre, ora denso, a depender da situação por hora de Pink, é impossível não se sentir tocado diante da levada lenta de The Thin Ice e das conduções em violão da dupla Mother e Goodbye Blue Sky. Momentos mais agitados aparecem nos Rockões Young Lust e Run Like Hell. Até mesmo os climas de suspense criados em faixas-interlúdio, como The Happiest Day Of Our Lives e Another Brick In The Wall Pt. 3, por exemplo, impressionam sobremaneira. Todavia, em meio a tantas músicas tão criativas, destacam-se mesmo a triste e densa balada Hey You e o clássico Confortably Numb, dona daquelas que talvez sejam os mais importantes solos de guitarra da história do Rock, obra de ninguém menos que David Gilmour, o guitarrista que com duas notas faz o que John Petrucci não consegue fazer com mil.
E o que falar de Another Brick In The Wall pt. 2, aquela música que até sua avó já ouviu? Sua levada Disco Music desagradou Gilmour, ao contrário de Waters e do baterista Nick Mason. A ideia de juntar um coro de crianças para cantá-la partiu do produtor Bob Ezrin, que já tinha feito essa mesma experiência no passado com Alice Cooper e Lou Reed. Alun Renshaw, que dirigiu o coro de crianças na dita música, se mostrou bastante entusiasmado com a ideia:
“Eu sempre quis tornar a música uma coisa relevante para as crianças. Eu achei a letra da música fantástica – ‘não precisamos de educação, não precisamos que controlem nossos pensamentos’ – Então achei que isso seria uma grande experiência para as crianças”.
E quase quarenta anos após seu lançamento, The Wall continua tendo um forte impacto cultural. Prova disso é uma experiência pessoal que “este que vos fala”, um professor, teve com Another Brick In The Wall pt. 2 na escola em que ele leciona. Durante dois meses de ensaio para a semana cultural da escola, preparou-se uma versão para este clássico do Pink Floyd que fortemente engajou e encantou todos os alunos que participaram. O mesmo pensamento que Alun Renshaw teve de compartilhar essa música com suas crianças, este redator e seus colegas professores (que ironia com a obra original!) tiveram para compartilhar com seus alunos naquilo que veio se tornar um sucesso de espetáculo. A música do Pink Floyd consegue vencer a implacável resistência do tempo e até hoje tem força para derrubar muros, culturais ou pessoais.
Só espero sinceramente que nenhum de meus alunos se torne um Pink da vida…
The Wall – Pink Floyd (Harves Records, Columbia, 1979)
Tracklist (versão original em vinil duplo):
Lado 1:
01. In The Flesh?
02. The Thin Ice
03. Another Brick In The Wall (Part 1)
04. The Happiest Day Of Our Lives
05. Another Brick In The Wall (Part 2)
06. Mother
Lado 2:
01. Goodbye Blue Sky
02. Empty Spaces
03. Young Lust
04. One Of My Turns
05. Don’t Leave Me Now
06. Another Brick In The Wall (Part 3)
07. Goodbye Cruel World
Lado 3:
01. Hey You
02. Is There Anybody Out There?
03. Nobody Home
04. Vera
05. Bring The Boys Back Home
06. Confortably Numb
Lado 4:
01. The Show Must Go On
02. In The Flesh
03. Run Like Hell
04. Waiting For The Worms
05. Stop
06. The Trial
07. Outside The Wall
Line-up:
Roger Waters – vocais, contrabaixo, teclados, violão
David Gilmour – vocais, guitarras, contrabaixo, teclados
Nick Mason – bateria, percussão
Richard Wrigth – teclados
Participações:
Jeff Porcaro – bateria em “Mother”
Lee Ritenour – guitarras em “One Of My Turns”, violão em “Confortably Numb”