“SALVAÇÃO”! Essa terminologia sempre veio acrescida da sonoridade punk desde os seus primórdios, na segunda metade dos anos 70. “Chato, pretensioso, irritadamente sinfônico, metido a besta, isso não é rock!”, eram os brados proferidos pelos detratares que abominavam a meteórica ascensão da cena progressiva e dos grupos de art-rock que protagonizaram o panorama vigente. Com a explosão do Sex Pistols, tínhamos a primeira “salvação” incensada para o gênero: o rock voltava ao seu estado primal, contestador, calcado em simplicidade e atitude. O lema “faça você mesmo” prometia uma invasão de frescor pelo mundo, juntamente com a cena inglesa. Após o The Clash “subverter” a musicalidade punk rock ao encorpar várias influências díspares (com a contribuição de The Jam, Television, The Stranglers, além dos Ramones nos EUA), os subgêneros nascidos foram determinantes no contexto musical da década de 80: post-punk, new-wave, dark/gotic e hardcore (que foi um pilar fundamental para o nascimento do thrash metal).
Artistas e bandas diversas tiveram grande notoriedade dentro de uma estética de composição mais minimalista e despojada. Mas a música POP chegava ao seu ápice nesse período, com o surgimento de grandes lendas e a indústria fonográfica alcançando seus maiores recordes em vendagens. O gênero do rock que mais se inseriu nesse contexto foi o hard-glam no mercado americano, repleto de polêmicas e exageros, com letras sexistas e visual debochadamente andrógino. O som trazia também rebuscamento, as bandas eram formadas por grandes músicos. E adivinhem o que aconteceu? Pois é, precisávamos de uma nova “salvação”, pois independente de dominarem as paradas de sucesso, não tinham a credibilidade assinada pelos roqueiros mais “puristas”, além do próprio saturamento da cena com a proliferação de uma infinidade de bandas.
O surgimento do movimento GRUNGE, através da invasão de imponentes grupos da cidade de Seattle, trouxe mais uma vez a “salvação do rock” a tona, com uma atmosfera calcada novamente em simplicidade e no caráter introspectivo das letras, além do espírito de contestação juvenil estar sendo renovado. Sucesso retumbante, dominaram os primeiros lugares da Bilboard de forma surpreendente, e se tornaram uma grande referência na primeira metade dos anos 90. Apesar da sonoridade das bandas terem em comum a influência pós-punk, o tom era pessimista e passava longe da euforia descompromissada na década passada. O desgaste causado pelo uso excessivo de drogas, o suicídio de Kurt Coubain e a grande exposição promulgada pela MTV, provocou o nascimento de uma nova “salvação”… Apesar da postura, nenhuma das bandas do grunge fazia um punk-rock numa esfera mais tradicional. E aí que entra em ação o lançamento do arrasa-quarteirão “Dookie” de 1994, do Green Day (seu terceiro álbum).
Mas esqueçamos das “virulências” passadas, nunca algo sob a alcunha punk era levado a esferas tão amenas, superficiais e comerciais. Contestação e atitude eram substituídas pelo inserimento direto do jovem daquela geração à aquela sonoridade particular. O trio americano fazia como a resposta britânica dos Beatles usando terninhos ao “perigoso” rock americano no início dos anos 60: “pais e mães, fiquem tranquilos, salvaremos seus filhos”! E o sucesso retumbante do Green Day (30 milhões de cópias vendidas pelo mundo, Grammy na estante e muto dinheiro no bolso) mostrou que a fórmula deu mais do que certo… O grunge pela sua multiplicidade e inovação, tomou conta do universo roqueiro, mas o “pop-punk dia verde” ia muito mais além…
Sim, atingiu em cheio aquele jovem (principalmente) senso comum, que clamava por uma futilidade e conflitos existenciais mediante o arquétipo rock. O vocal de Billy Joel Armstrong remete (com todo respeito) a um adolescente bêbado ou dotado de sérios problemas mentais. A identificação pareceu imediata dentro do festival de letras reflexivas e a busca por um diferenciado senso de humor(grande parte das vezes com largo fracasso). Com todo este sucesso do pop-punk, várias bandas vieram na esteira (algumas bem mais “raçudas” na sonoridade, como o The Ofspring), passando a ser trilha-sonora em filmes “blockbuster teen” e dando origem a vários sub-gêneros de gosto DUVIDOSÍSSIMO, como o famigerado emo-rock.
Para dar um exemplo de como a coisa se deu nessa época, aqui no Brasil o Green Day tocava também em rádios populares, acompanhados dos “fenômenos” do momento, como bandas de pagode, expoentes do funk carioca e axé music. “Playboys e patricinhas” tinham um rock para chamar de seu (o Charlie Brown JR apesar de bastante diferente, surfou BASTANTE nessa onda). O pop-punk-rock era instaurado no mainstream e o Green Day se tornou uma das maiores instituições do planeta, apesar da contestação desesperada de parte da comunidade roqueira com grau de exigência maior.
Sucesso meteórico a parte, a banda percebeu um óbvio envelhecimento do seu público, e independente de renovações geracionais, também sentiu a necessidade de amadurecer sua proposta de trabalho (afinal de contas, a esfera pessoal e musical também era afetada por mudanças), tanto na sonoridade quanto na temática poética. Mas o pop-punk não tinha como caráter primordial a superficialidade? A tarefa de transição não seria fácil, certo? O álbum que pode representar o pontapé dessa “guinada” foi “American Idiot” (2004), extremamente bem sucedido, premiado, digerido mundialmente, e que apesar das controvérsias recorrentes (faremos um parâmetro com ele mais adiante), o Green Day conseguia se renovar e novamente chegar ao ápice!
Mas estamos aqui para falar de “21st CenturyBreakdown”, o oitavo registro autoral da banda, que gerava grande expectativa. Primeiro pelo hiato de 5 anos sem material inédito (o maior do grupo desde então) e obviamente por ser considerado um sucessor do “meteoro” anterior. Produzido pelo renomado Bryan David “Butch” Vig (Nirvana, The Smashing Pumpkins, Jimmy Eat World, Against Me! e Foo Fighters), manteve o padrão midiático impressionante do “dia verde”, chegando ao primeiro lugar em vários países. Mas vamos disseca-lo com cuidado, como é de praxe aqui no Cronologia Roadie Metal.
Sinceramente, a maior mudança que eu vejo nessa fase da banda, é com relação as letras. O formato conceitual sugerindo uma ópera-rock traz elementos muito interessantes e atuais da sociedade americana. Tínhamos o impacto da eleição de Barack Obama no mesmo ano e a narrativa do disco traz dois personagens que atuam em três atos distintos. O encontro de Gloria (atuante militante revolucionária) e Christian (proletário buscando melhores condições de trabalho) resulta em forte paixão compartilhada pelo ideal ideológico, uma jornada conjunta do “passo do herói” contestador. A critica aos pilares da sociedade moderna soa bem ácida (honrando a tradição inicial do punk rock), e temos um mordaz e interessante questionamento de como um cidadão médio lida com seu cotidiano problemático, e ainda se coloca no front da luta por melhorias no coletivo.
Um questionamento interessante que foi trazido, repercute com exatidão a transição ocorrida nos rumos dessa história: “mas como engajar em uma causa, mesmo que nobre, quando essa mesma opressão consome o ser humano? Gloria e Christian passam então por problemas com vícios, pela perda da ideologia e da vontade de lutar. A televisão cegando a população enquanto os remédios cegam os protagonistas.” Essa queda consonante na relação do cotidiano com o idealitario dos personagens, é “iluminada” pela metáfora da redenção capitaneada pela eleição de Barack Obama. A trama realmente é um primor na contextualização de mecanismo de luta por uma estrutura social mais justa, deixando claro que em virtude dessa escolha, os caminhos podem ser tortuosos ao extremo. Mais punk-rock IMPOSSÍVEL!
Quanto a sonoridade, não consigo ver o mesmo impacto que o conceito proporcionou… Vamos as canções que foram singles com direito a vídeo-clipe. A faixa-título é cadenciada com forte apelo pop, e quando justamente deparamos com uma convenção que remete ao glam-rock setentista, na “velocidade da luz” se transforma no pop-punk de outrora. O encerramento bebe direto na psicodelia, e resulta em um momento bastante agradável. “Know Your Enemy” começa com um ótimo riff de hard-rock, que rapidamente incorre novamente ao pop-punk que os consagrou, dessa vez com uma levada que alterna com o pós-punk.
“Last Of The American Girls” começa dentro de uma sonoridade punk clássica, transmuta para um rock de garagem retrô e o refrão tem uma ótima incursão que acompanha o combo nostálgico. Aliás, o vocal apesar de menos escrachado que na época de “Dookie”, continua oscilante e soando pueril, não condizente com a forte mensagem que é transmitida no disco. Parece uma espécie de marca-registrada, “para o bem ou para o mal”… A forte balada “21 Guns” é outra canção que transita pela esfera do glam-rock a la David Bowie, com um bom solo de guitarra e clima etéreo. Essa consegue sair TOTALMENTE do arquétipo pop-punk, e isso é ótimo!
A grande sacada sonora dessa nova fase do Green Day é investir em mudanças pontuais, nada radicais em sua estrutura melódica na maior parte das canções. O pop-punk vem com influências mais díspares, muito motivadas pelo conceito operístico, que permite uma transição por outros gêneros para contar uma história. Portanto se você era um ouvinte defenestrador dessa sonoridade, ela não se foi, está lá firme e forte. Se já era um grande fã, zero decepção para você! E isso se permeia por todo o desenrolar de “21st CenturyBreakdown”. Essa “ousadia’ com o pé no freio e muito bem calculada, iniciada em “American Idiot” (juntamente com a mudança de atitude na narrativa literária), é o segredo do sucesso do Green Day em sua fase mais “madura”. Ah, só para remetermos ao “fio da meada”, ainda tivemos muitas outras “salvações do rock” atreladas a algum subgênero punk, é quase uma tradição de tempos em tempos…
Green Day-“21st CenturyBreakdown“
Data de lançamento: 15/05/2009
Gravadora: Reprise Records
Formação:
Billie Joe Armstrong (guitarra e vocais)
Mike Dirnt (baixo e back vocais)
TréCool (bateria e percussão)
Tracklist:
1 – “Song of the Century”
Ato I: Heroes and Cons
2 – “21st CenturyBreakdown”
3 – “Know Your Enemy”
4 – “¡Viva la Gloria!”
5 – “Before the Lobotomy”
6 – “Christian’s Inferno”
7 – “Last Night on Earth”
Ato II: Charlatans and Saints
8 – “Eat Jesus Nowhere”
9 – “Peacemaker”
10 – “Last on American Girls”
11 – “Murder City”
12 – “¿Viva la Gloria? (Little Girl)”
13 – “Restless Heart Syndrome”
Ato III: Horseshoes and Handgrenades
14 – “Horseshoes and Handgrenades”
15 – “The Static Age”
16 – ’21 Guns”
17 – “American Eulogy” (A. “Mass Hysteria” / B. “Modern World”)
18 – “See the Light”