Quando as biografias de artistas consagrados do Rock começaram a surgir com força nas prateleiras de nossas livrarias, dois dos principais lançamentos disponibilizados foram a autobiografia de Eric Clapton e este livro sobre os Beatles. Comprei os dois, mas me relacionei com cada um em um momento diferente. Clapton foi lido logo; The Beatles? Bem…
As mesmas características que me atraíram para a compra foram, de certa forma, as mesmas que motivaram o atraso na sua absorção por mim: a capa dura, o volume extenso… Detalhes que demonstram um acabamento bem cuidado, mas que também criam certas barreiras quando você tem outras obras na espera.
“The Beatles” com suas 850 páginas e capa dura assemelha-se a um dicionário. Não é o tipo de livro que você se sente confortável em perambular com ele para cima e para baixo, para aproveitar sua leitura na fila do banco ou enquanto espera no consultório do dentista. É algo mais para ser lido em casa e, mesmo nesse ambiente, existe uma certa disputa com outros livros que estão aguardando sua vez e ficam olhando para você com cara feia: “Essa fila não anda? Faz quatro meses que estou esperando!”, “Quando é que vão chamar minha senha?”. Bem, os Beatles estão na fila do atendimento prioritário, então temos que respeitar as regras.
Eu sempre pegava algum outro livro de menor volume para passar na frente, protelando a sua leitura, mas a partir do momento em que estabeleci um método que poderia agilizar o processo, tudo o mais transcorreu naturalmente. O mais interessante, sobre os Beatles em minha vida, é que eles pareceram estar sempre presentes. Até hoje, tenho uma relação de estranheza com sua discografia, pois não foi assim que conheci a banda. A ordem das músicas nos discos sempre me pareceu algo alheio a minha experiência. Eu nasci pouco tempo antes da banda ser oficialmente desfeita, portanto, tive um tipo de contato simultâneo com todas suas principais canções, de forma misturada, através do rádio, sem sequer ter exatamente noção do que ouvia. Músicas como “Don´t Let Me Down” faziam parte da minha infância, mas somente muito tempo depois é que viria a associá-las com seus intérpretes. E esse é apenas um exemplo. Saber que havia um intervalo entre essa canção e, por exemplo, “Love Me Do”, foi algo que eu só assimilei quando passei a me interessar mais seriamente por Rock. Antes disso, era um conjunto amorfo onde todas as canções coexistiam.
Mas o livro, é claro, não se atém a um tipo de percepção tão precária. Sua narrativa é de uma completude invejável, onde as informações fluem e se sobrepõem sem excessos ou lacunas. O nível de detalhamento é tão extenso que Ringo Starr só surge na história na página 330 do volume. O autor programou dois anos de pesquisa que acabaram por se tornar sete e essa meticulosidade transparece em cada momento, quando todos os detalhes do sexteto Beatles são revelados. Sim, sexteto, porque o empresário Brian Epstein e o produtor George Martin tem tanta atenção ao longo do texto quanto o quarteto principal.
George, dado o seu nível de envolvimento, acaba por se tornar um personagem primordial da saga, mesmo porque, no começo do relacionamento, ele não queria trabalhar com aquele tipo de banda, mas depois que aceitou o trabalho, foi sendo surpreendido paulatinamente pelo talento e pela dedicação dos Beatles. Para Martin, cada novo dia revelava que havia algo mais ali. E acabou por entregar sua total confiança nos músicos que, por sua vez, a cada descoberta, passavam a encarar o estúdio não como um local estéril, mas um ambiente cheio de possibilidades e que, paulatinamente, afastou-os dos palcos, por não terem condições de reproduzir o que estavam fazendo nos estúdios. Não haviam pedais de efeitos ou samplers que auxiliassem na transposição do que elaboravam no ambiente de criação. Um dos pontos de corte do livro está justamente no relato tenso da visita à Filipinas, onde um desentendimento com o governo ditatorial do comandante Marcos causou uma situação extrema, cujas consequências levaram a uma crise nervosa de Epstein e o reforço na ideia de que fazer turnês não era mais algo que interessava a banda, principalmente quando as pessoas pareciam vir pelas celebridades e não pela música.
Os Beatles tiveram que criar a cultura de escutar Rock em um tempo onde ninguém se importava com o estilo ou o levava à sério. O período “Sgt. Peppers…” representa o começo de um maior aparte criativo e de intenções individuais entre os músicos, bem como a diminuição da figura de Epstein com a intenção de suspensão das turnês. A cada momento, o relacionamento de colaboração/competição entre Paul e John era evidenciado, com um rico detalhamento sobre a forma como cada uma das principais composições surgiu: Seja nos insights criativos e no pragmatismo de Paul, nas instabilidades e angústias de Lennon, na introspecção de George ou no imenso coração de Ringo, o certo é que, rumo ao fim, não há como se apontar uma razão específica para a dissolução. A presença de Yoko Ono, as diferenças criativas ou os erros de gestão empresarial são – juntos e isoladamente – motivos para o término, mas, mesmo nos últimos instantes, sempre se evidencia que o ato coletivo da criação estava acima das diferenças.
“The Beatles” é uma leitura rica e saborosa e não se surpreenda caso, ao final, sinta vontade de reiniciá-lo. Como eu disse, os Beatles estiveram sempre presentes. Ler sobre eles é ler sobre o mundo ao nosso redor e o lugar que a música tem dentro dele.