Quando li a micro-resenha de What One Becomes na lista de melhores álbuns de Metal de 2016 do Loudwire, me saltou aos olhos o elogio revered noise-maker dirigido à figura de Aaron Turner, grandessíssima mente à frente do projeto. Numa época em que (adoro frisar) toda banda de metal que me chegava era super comprimida e impossível de soar no mundo real, o primeiríssimo ataque deste álbum me causou um “AE CARALHO!” comemorativo, posto que eu jamais tinha ouvido nada soar desse jeito em outra banda. E é isso, desde a primeira nota você vai entender. Mas vamos a um pequeno histórico!
O SUMAC é uma banda de sludge /death metal (e se não concordarem, me dêem ai uma luz, pois não é fácil definir o que eles fazem!) que iniciou suas atividades em 2014 nos Estados Unidos sob os esforços do multifacetado e superprodutivo Aaron Turner. Eu confesso que quase me dá preguiça de tentar elaborar um texto que resuma o que é a carreira desse cara. Ao todo, foram 15 bandas, MUITOS discos gravados e uma atuação notável como artista visual. Pesquise, é certo que alguma coisa dele você vai gostar!
Juntaram-se a Turner (guitarras, vozes e artes gráficas) o canadense Nick Yacyshyn (bateria) e o membro auxiliar – entendam como “quebra-galhos” – Brian Cook (baixo). Lançado sob o selo independente Thrill Jockey e com produção e mixagem de Kurt Ballou (Converge), What One Becomes é o segundo álbum da banda, precedido por The Deal (2015). Como explicado na nota oficial de lançamento de What One Becomes, este expõe uma jornada de desconstrução de estruturas identitárias, articulada por “dispositivos musicais de liberação catártica” capazes de aliviar o peso da ansiedade – experienciada por Turner, muito provavelmente. É uma busca por um entendimento de mais uma camada de si mesmo, uma terapia através da música pesada.
O som é absolutamente único. Eu nunca tinha ouvido essa escolha de timbres na minha vida, tudo me soou completamente novo. É MUITO pesado, só que em uma velocidade bem mais lenta do que outras bandas às quais estamos acostumados a atribuir peso. Soa muito arredondado e grave, como que estufado, e as vozes guturais de Turner não encontram dificuldades para furar essa camada espessa e consistente. A bateria tem um dos sons mais orgânicos que já ouvi nos últimos tempos, e graças a Satanás, o pai de todo o metal extremo, é dinâmica! Faz quanto tempo que a gente não houve um baterista tocar com dinâmica em metal? Pois esse toca!
Pra um cara como o Aaron Turner que já gravou mais horas de música do que eu tenho de vida, faz bastante sentido que cada álbum tenha materiais e desenvolvimentos bastante específicos, pois ideias simples, quando trabalhadas de forma engenhosa, são capazes de se desdobrar em horas da mais maravilhosa música, sem que seja necessário inventar a roda a cada segundo. E é exatamente o que ocorre aqui! As mesmas estruturas musicais recorrem no álbum todo. Na verdade, os gestos instrumental, melódico, rítmico e harmônico são limitados a um número pequeno de ideias, e a identidade do som é compreendida em poucos minutos de audição – ok, poucos não, pois é só aos 4 minutos da primeira faixa Images of Control, após de um longo improviso ruidoso e um dorido monólogo de guitarra, que a banda toda entra com as levadas que são tão características deste disco: todos, guitarra, baixo e bateria tocando muito colados, acentuando juntos os tempos mirabolantemente arbitrários que ficou combinado de acentuarem. Escute e entenderá!
Ainda nesta faixa, a letra desenvolve suas imagens inconscientes de forma muito lenta, quase tão lenta quanto as frequências graves presentes nesse espectro sonoro. Não me parece possível – ou talvez eu esteja sendo limitado – apreender um conteúdo específico deste material poético, que nos lança representações fugidias de alguma(s) categoria(s) do sofrimento humano: Bloodied eyes, no tears! Bloodied eyes, no light! Então, sei lá, não entenda – sofra junto!
Em Rigid Man, as imagens de um severo serial killer são sustentadas por aquele peso lento já citado, um solo de guitarra subaquático – que tem dificuldades em articular o que quer dizer –, uma longa meditação psicodélica e um clímax que se define como o momento mais urgente da música, no qual Nick Yacyshyn faz jus ao conceito criado por Turner, tocando uma bateria ansiosa, com muita movimentação rítmica e uma boa dose de caos.
A harmonia se abre menos tensa em Clutch of Oblivion, que mais uma vez nos leva a uma longa viagem pelo som característico desse disco. Na introdução de mais de quatro minutos, o riff de guitarra se repete quase que pra sempre, de forma minimalista, com suas poucas notas baseadas em um único acorde; a bateria é simples em sua levada lenta típica do rock psicodélico com pegada stoner, e o baixo acompanha o fraseado da guitarra com belas melodias de notas longas que caminham em um som quase sem ataque mas pleno em corpo. Quando a banda se empolga, você percebe o quanto de energia eles têm pra oferecer e conclui que jamais vai ouvir isso em outro lugar! Os climas se alternam de modo muito orgânico, e mesmo que não haja estruturas formais que se repitam com muita clareza (refrãos, por exemplo) nada aqui soa como colcha de retalhos. Na poética temos uma observação de nossas memórias mais escondidas, desde o apego infantil ao seguro e requisitado pelo pai seio materno – uma representação possível da castração – até a lembrança coletiva de nossa animalidade traduzida em violência e guerra.
Uma crítica à religião bem própria e abstrata se desenvolve ao longo dos 18 minutos de Blackout, faixa cheia de espaços e que em diversos momentos se utiliza do ruído como recurso expressivo. Sua forma se assemelha a um longo dia de pensamento numa cabeça bipolar, na qual o caos desesperado é capaz de preceder a mais perfeita paz, e vice-versa. O fim (que dura bons 6 minutos) é reconciliador: a guitarra deixa soar todas as notas dedilhadas de seus acordes tranquilamente dissonantes, e é acompanhada por mais uma levada rock muito bem acertada por Yacyshyn nessa fuga rumo ao horizonte em um dia quente e deserto. É claro que em What One Becomes, nem mesmo a reconciliação é propriamente feliz!
Will to Reach fecha o álbum com imagens de uma espécie de massificação ao redor de alguém como um deus – ou enviado dele – capaz de mover as pessoas em seu nome e glória. Milhares recebem máscaras para substituir o buraco de seus derretidos rostos infantis, e se fazem como oferenda para que possam alcançar a luz. A energia desta faixa é alta desde o início, e chega ao ápice aos aproximadamente 8 minutos, quando um blast beast apresenta um dos momentos de maior velocidade desta audição.
SUMAC nos convida a uma escuta musical quase ritualística, a um demoradíssimo transe pesado que em nada pode lembrar as canções “abra e coma” das rádios que nos acompanham em nossos cotidianos tão mecânicos. É arte sonora da melhor espécie, concisa, completa, conceitualmente densa e muito particular. Estejamos atentos, pois a banda se encontra em estúdio para gravação de novos materiais e eu não esperaria pouca coisa desse power trio tão power.
Formação:
Aaron Turner – guitarra e vocal
Brian Cook – baixo
Nick Yacyshyn – bateria
Faixas:
01. Image of Control
02. Rigid Man
03. Clutch of Oblivion
04. Blackout
05. Will to Reach
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10/10