Resenha: Steven Wilson – The Future Bites (2021)

Steven Wilson tornou-se um ícone para o rock progressivo com o Porcupine Tree, seu trabalho solo, alguns projetos paralelos e também por trabalhar com a remasterização de muitas versões deluxe de clássicos do gênero, porém não esperem de “The Future Bites” um típico disco de rock progressivo. Em “The Future Bites”, produzido pelo próprio Wilson e por David Koster, o multiinstrumentista se dedica à música eletrônica, em um flerte com o pop, com baterias eletrônicas, teclados e vocalizações dando o clima do disco.

The Future Bites, o sexto álbum solo da carreira de Steven Wilson, foi lançado em 29 de janeiro de 2021 nas plataformas digitais. Wilson se inspirou em temas candentes da contemporaneidade para redigir suas letras: a alienação política (na canção Man of the people), o narcisismo  e o hiperindivualismo (na Self), o consumismo exacerbado (Personal Shopper), entre outros, são alguns dos temas das canções do The Future Bites.

Após a curta abertura com “Unself”, uma faixa acústica, vem “Self” com uma pegada mais eletrônica e um refrão contagiante, aliás já aproveito essa faixa para destacar os vocais de Steven Wilson, que estão excelentes em todo o trabalho. “King Ghost” segue a mesma linhagem e perto do final da canção comecei a sentir mais uma influência que permeou por “The Future Bites”: o synthpop, rock alternativo e post-punk, todos gêneros que exalam anos 80. Essa influência fica ainda mais clara na faixa “Follower”. Se você fechar os olhos nas melhores partes de teclados nessas canções, você se sente no meio daquela década fazendo parte daquele movimento.É ainda mais curioso notar essa influência dos anos 80 neste trabalho quando você se depara com certas letras, como na canção “12 Things to Forgot” em que Steven diz em determinada estrofe: “agora eu só fico sentado no canto reclamando de como as coisas eram melhores nos anos 80”. Sobre a canção em si, “12 Things to Forgot” é o mais próximo de canção pop\rock que podemos chamar neste álbum. Guiada por violões e por bonitas linhas vocais (e vocais de apoio também), a canção poderia entrar facilmente na programação de qualquer rádio de música pop/rock pelo mundo.

Agora vamos a uma análise mais pormenorizada das músicas que compõem a obra geral de “The Future Bites”.

1 – Unself

O álbum se inicia com a música/prelúdio “Unself”, onde é inserida a ideia que seria mais explorada na música subsequente, “Self”. Nessa introdução de 1min5s as frases da música são cantadas acompanhadas por um violão ao fundo e por diversos elementos da música eletrônica, que estarão presentes em todo o álbum. Em Unself, Wilson diz “The self can only love itself” e “And love is hell”. Essas frases dão o tom de uma das críticas que vão permear o álbum como um todo: o narcisismo e a fragilidade de identidade do indivíduo contemporâneo. Cultuamos a nós mesmos; só há o amor por si e, mesmo assim, o amor é o inferno. Se “o inferno são os outros”, o inferno aqui somos nós mesmos com o nosso amor-próprio que se retroalimenta por essas práticas de auto culto. “Narciso acha feio o que não é espelho” e, assim, se afoga no lago em que sua imagem é refletida.

2 – Self 

Em “Self”,  Wilson aborda diretamente a questão do culto ao “self”, ao eu,  na sociedade contemporânea. Vivemos uma epidemia de “self”: desde os auto-retratatos (os selfies) e o culto à auto imagem até os tantos “selfs” (auto) que nos permeiam: self-love, self-made, self-esteem, self-help. A pedra angular do tempo em que vivermos é “self”. O discurso está focado no eu e nisso está a tácita crítica que Wilson expõe nessa música: o narcisismo dos indivíduos modernos.  Com elementos eletrônicos e dançantes, algumas das demais faixas irão seguir esse mesmo ritmo, nessa mesma proposta musical. 

3 – King Ghost

Em “king ghost” a faixa é misteriosa; seu clima,  intimista. O eu lírico é alguém que está passando por dificuldades de se encontrar em alguma circunstância de vida, “Will you help me gather my thoughts? Will you help me find transitions I forgot?”. O sentido da canção não é explícito, e podemos só fazer inferências e tentativas de compreensão. Ademais, essa música nos traz muita reflexão e suscita em nós diversos sentimentos relacionados à busca de algo que está sendo perdido, de alguém que precisa se adaptar para não perecer “You can wash away the dirt/ But you can’t wash away the failure /You’d better take you meds/Get out of bed”. Indo mais além nessa tentativa de buscar a mensagem da letra, podemos até inferir que o “king ghost” é aquele a quem o eu lírico procura para não se perder de si mesmo “King ghost hold me / Like I was your only memory.”  Vale frisar que o clipe dessa música é belíssimo e de extremo bom gosto e sutileza! Extrapolando um pouco mais, o “king ghost” não poderia ser o ethos de um tempo histórico que está se perdendo e confundindo os indivíduos nas novas formas de viver e se conceber no mundo? A fotografia é um instante cristalizado no tempo e o indivíduo está passando rapidamente, num deslocamento temporal acelerado,  bem condizente às sociedades urbanas aceleradas.  “When you’re moving through a photograph/ You’re faster than most/ You’re bloody king ghost.” Enfim, King ghost é música que estimula muitas reflexões e a própria composição musical colabora para isso. Steven Wilson, numa das respostas a seus fãs no seu instagram, disse que King Ghost é uma das suas faixas favoritas, junto com Man of the people. 

4 – 12 Thing to Forgot

A meu ver 12 Things to forgot é a música menos interessante do álbum todo. Nela, vemos o tom melancólico que acompanha Wilson nas redações das letras de Porcupine Tree. No entanto, por mais que a letra esboce um sentimento de perda, confusão, “I forgot what it was that I was There was a time when I had some ambition/ Now I just seem to have inhibitions” a composição musical não segue a mesma linha da letra, mas é animada.

5 – Eminent Sleaze

Na “Eminent Sleaze”, quinta faixa do álbum, há dois momentos que se alternam ao longo da música: os momentos calmos em que o personagem de Steven canta sozinho, e o segundo momento, onde o ritmo se acelera com o uníssono de pessoas cantando o refrão da música. 

Na letra podemos perceber que Wilson traz um personagem que é metaforicamente um réptil: muda de pele de acordo com o ambiente, (“Me, I’m a bona fide reptile”).  O personagem da letra seria um grande mestre dos disfarces e da mentira, “And my smile, sincerely a lie/ I got designs to hypnotise”,  que transitaria em todos os ambientes com a incrível capacidade de retórica e convencimento e lançaria mão de atributos como o charme e sedução (“I turn on the charm”) para convencer seu interlocutor. O personagem de Eminent Sleaze é um grande sedutor, que dobra as regras. (“Rules keep on bending yeah”) .

 Esse eu lírico poderia ser tanto o vendedor de produtos, que manipularia sua fala com vistas a identificar o desejo do comprador e o convencer a adquirir a mercadoria (“So just keep on spending yeah”), sendo o hiperconsumo e a auto destruição tema da faixa número sete, Personal Shopper, como também o político populista, tema da faixa subsequente. De qualquer forma a letra aborda a capacidade de manipulação e de convencimento que é utilizada por diversas figuras na sociedade, do vendedor ao político, que enganaria pessoas para atingir seus objetivos. 

6 – Man of The People

A música “Man of the people” traz em seu título uma expressão que significa “político populista”, aquele que representaria, em teoria, o interesse do povo.  Em diversas entrevistas para a promoção do álbum, Wilson demonstra preocupação com os caminhos que a humanidade tem tomado com a ascensão de políticos autoritários como Donald Trump, nos Estados Unidos, de Viktor Órban, na Hungria e Jair Bolsonaro, no Brasil, só para citar alguns. 

“Man of the people” traz uma ambientação leve, com efeitos de voz de reverberação que nos envolve do início ao fim da música. Por mais que a letra expresse ideias sérias e de extrema importância para os tempos atuais, o ambiente sonoro da música denota sedução, envolvimento, bem afim a esse tipo de figura política que, instrumentalizando emoções e fazendo uso de boa retórica, consegue mobilizar corações.

No entanto, não sabemos ao certo de onde parte o eu lírico, se ele seria o  “man of the people” que estaria dissuadindo terceiros de suas convicções políticas, (“The camera eye, the drug is just to be near you”),  ou de algum seguidor seu, persuadido de suas ideias, (“And I’m just part of the plan”). Wilson consegue tangenciar o tema, tão polêmico pois mobiliza emoções em todo o espectro político, da direita à esquerda, sem tocar diretamente na defesa de posições, mas deixando tacitamente claro seu pensamento nesse assunto, (“And what is left of us?Now there’s only the cinders”). Em suma, Wilson consegue abordar um tema polêmico com sutileza, delicadeza e nas entrelinhas. 

7 – Personal Shopper

Em seguida temos a Personal Shopper, canção de maior duração do álbum: 9min49s. Seu título, “personal shopper”  se refere à profissão de auxiliar de compras.  Ou seja, é uma pessoa que irá orientar o consumidor nas suas compras, indicando as opções e o que de melhor há no mercado.

Nela, sua uma composição sonora carrega um clima sombrio, sendo seu ritmo ditado pela batida de bateria ao fundo. No entanto, no refrão, a música se torna mais animada, mais dançante, com os vocais de apoio repetindo o refrão. Do meio pro fim, Elton John faz sua participação, lendo uma lista de itens de compra.

Personal Shopper faz uma crítica à sociedade do consumo, em que as pessoas vivem para consumir e consomem como ‘modo de vida’.  Vale pontuar a genialidade do clipe dessa música! 

8 – Follower

 Follower, oitava faixa do álbum, se compõe – como todo o álbum – por elementos da música eletrônica, trazendo uma sonoridade dance/pop.  Aqui, mais uma vez, Wilson segue com sua crítica aos comportamentos nas sociedades modernas e que são reproduzidos nas redes sociais como a busca por aceitação, por likes, por “seguidores”. Lançando mão de sintetizadores e demais ferramentas atinentes às músicas eletrônicas, nessa música ouvimos… 

9 – Count of Unease

O álbum finaliza com a música “Count of unease”. Calma, misteriosa, como se fosse uma música de meditação, com o vocal calmo, lento.  Depois do álbum nos entregar canções energizantes, dançantes, ele deixa o ouvinte com essa canção zen.

Podemos perceber que o fio condutor que liga as 9 faixas do álbum é uma sutil crítica ao atual momento histórico em que vivemos.  Vemos uma crítica ao egocentrismo e narcisismo de pessoas que encontram nas mídias digitais sua expressão por excelente; vemos uma crítica às figuras autoritárias que ascendem ao poder com seu discurso sedutor porque afetivo e pessoal; uma crítica ao hiperconsumo como valor que faz girar a roda da economia global mas que gera comportamentos compulsivos em indivíduos que fazem do “comprar e descartar” um estilo de vida.

Por fim, vemos que esse álbum é mais uma das tantas obras fenomenais de Steven Wilson e que vale muito a pena ser ouvida!  Pensando o tempo presente, ele aborda diversos fenômenos sociais contemporâneos. Na musicalidade, ele prossegue em sua nova jornada de enveredar por caminhos musicais que não só pelo gênero que o consolidou, o progressivo. Steven Wilson consegue unir crítica social – mesmo que abordada sutilmente em suas músicas – com uma musicalidade mais “comercial”, mais “palatável” aos ouvidos mais simples. Na obra de Steven Wilson conseguimos perceber que o sofisticado pode muito bem vir acompanhado de simplicidade. Wilson nos prova com seu álbum “The Future Bites” que o refinamento musical não se vincula essencialmente a uma concepção técnica e erudita de música, mas que pode vir também por meio de fórmulas mais simplistas, como a música eletrônica e pop. Nada que seja novo para todos aqueles que já sabem do talento desse grande expoente da música progressiva que é Steven Wilson.

Steven Wilson – The Future Bites
Data da lançamento: 29 de janeiro de 2021
Gravadora: Caroline International

Faixas:

1. Unself
2. Self
3. King Ghost
4. 12 Things to Forgot
5. Eminent Sleaze
6. Man of the People
7. Personal Shopper
8. Follower
9. Count of Unease

Formação:

Steven Wilson: vocais, guitarra, teclado, sampler, baixo, percussão, programação
David Kosten: programação, sintetizador, bateria em “Count of Unease”
Michael Spearman: bateria, percussão
Nick Beggs: baixo em “Personal Shopper”, Stick em “Eminent Sleaze”
Adam Holzman: teclados em “Eminent Sleaze” e “Follower”
Richard Barbieri: sintetizadores em “Self”
Jason Cooper: pratos e percussão em “King Ghost”
Blaine Harrison: vocais de apoio em “12 Things I Forgot”
Jack Flannagan : vocais de apoio em “12 Things I Forgot”
Elton John: voz falada em “Personal Shopper”
Bobbie Gordon, Crystal Williams, Wendy Harriot, Fyfe Dangerfield, Rotem Wilson: vocais de apoio
The London Session Orchestra: em “Eminent Sleaze

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