Hoje me propus a resenhar o primeiro álbum completo de uma banda curitibana que admiro muito: Othersame. A Othersame é uma banda que eu, particularmente, considero única, não só no cenário de Curitiba, mas no cenário brasileiro de maneira geral. Com sua mistura de influências que flutuam entre post-rock, rock progressivo e post-hardcore, o som que a banda faz é simplesmente lindo. Ao vivo é simplesmente de fazer os olhos brilharem com tamanha qualidade de timbres e de execução, e na gravação de estúdio não é diferente. Definitivamente Othersame está na minha lista de bandas que são “exceções” em meu gosto musical, pois mesmo não gostando de post-rock e prog, eu faço questão de assistir à banda sempre que possível.
Formada em 2016, é constituída atualmente por: João Cardoso (vocal e guitarra), Tissu (guitarra), Alemão (baixo e synth) e Ravi (bateria). Em sua breve discografia, conta com somente um EP, “Counting Saturn“, o qual foi regravado em 2018 por descontentamento dos membros com a sonoridade da gravação original ( perfeccionismo, não?) e o objetivo desta resenha, o álbum “Depiction“, lançado em março deste ano.
O processo de gravação de “Depiction” levou em torno de um ano desde as pré-produção até o lançamento, o que mostra que houve uma grande consideração da Othersame em entregar um material de extrema qualidade para seu público. Além disso, houveram três estúdios envolvidos na gravação, dois em Curitiba (Empório Du Som e Fuzz Studio) e um em Florianópolis (Calamar Sounds), o que fez com que a banda tivesse que, por muitas vezes, realizar viagens para fazer toda a gravação. Só com todo esse empenho, já sabemos que não pode sair algo ruim de “Depiction“
Como são 9 faixas com (no geral), mais de 5 minutos de duração, farei minha clássica resenha faixa a faixa, pois creio que terei muito a analisar de cada uma. Vamos lá!
O álbum começa com a faixa “Viva o Som!”, cujo nome vem de uma expressão muito utilizada pelo baixista Alemão, mas que foi inicialmente cunhada por Hermeto Pascoal. A faixa tem somente 1:37 e serve como uma apresentação do que será “Depiction”. É uma faixa inteiramente instrumental e extremamente atmosférica que mostra que a experiência do álbum será extremamente profunda.
A vibe já muda totalmente com a entrada da segunda faixa, “Inner Selfish”, que tem uma introdução bem puxada para o rock alternativo, com a bateria sendo atacada com força por Ravi e a guitarra fazendo um riff simples, no entanto bem agradável. É uma introdução que já te faz bater o pé desde o primeiro segundo. Após a introdução, “Inner Selfish” se mostra uma música com a pegada padrão da Othersame, um grande destaque para todos os instrumentos, o vocal de João que chega de leve e traz uma emoção única para a música (eu particularmente tenho vontade de chorar em quase todos os refrões da banda), uma ambientação absurda que faz sua cabeça ir para outro plano. Tudo isso com breves trechos progressivos em meio à música. Isso é Othersame, uma banda que te faz viajar, curtir e se emocionar, tudo em breves 5 minutos. Um pequeno destaque para o trecho antes do segundo refrão, onde, após o trecho progressivo, surge do nada um blastbeat em meio à toda ambientação, que é uma mistura bem interessante. Quanto à letra, fala sobre alguém que mudou completamente, mas que mesmo assim se acha extremamente importante e certa em tudo que fez, que parece estar sempre com respostas prontas, mas no fundo é alguém que já deixou sua essência morrer, por mais que não reconheça. Uma pessoa “internamente egoísta”, que se importa muito com si própria, por mais que tenha se deixado morrer, tal como intui o título.
“Deadlock”, a terceira faixa do álbum, foi também o primeiro single do mesmo. É uma música que mantém o ânimo da introdução da anterior, porém muito mais puxada para o post-hardcore. Ao contrário de “Inner Selfish”, que é mais intimista, mais emocional, “Deadlock” é bem mais animada, mais enérgica. Novamente, no meio da música, temos um trecho progressivo que muda completamente a pegada linear da música, mas em momento algum a música perde a energia. Antes do último refrão, uma surpresa: um breakdown. A banda mostra com essa faixa como é possível se basear um estilo sem se perder em clichês, fazendo uma ótima música de post-hardcore, mas que não é como as músicas de post-hardcore que conhecemos, é o post-hardcore com a pegada da Othersame. Em sua letra, a música fala sobre uma vida que não parece ter progresso (uma vida que é uma “deadlock”), com o eu lírico sempre esperando algo novo acontecer, algo diferente, mas que nunca acontece.
“Escape”, faixa seguinte já começa bem mais calma, com um dedilhado. Mas logo tudo muda, com uma introdução bem mais “barulhenta”, que inclui inclusive um synth inesperado. Novamente, tudo muda, e a melancolia da introdução retorna para o o verso. No refrão, junto com a voz maravilhosa de João Cardoso, se adiciona a voz de Jessica Waltrick (Everside), que mesmo não tendo grande destaque no trecho, traz uma harmonia muito bonita em conjunto com João. Eu particularmente gosto muito de músicas onde se mistura uma voz masculina com uma feminina, parece que tudo se completa da melhor maneira. “Escape” se aproveita de seus 8 minutos para trazer um grande trecho instrumental no meio, que traz um enorme caos para a música, com muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo e a habilidade de todos os membros sendo colocada à prova. Única coisa que faltou, na minha opinião, foi algum trecho em que Jessica Waltrick cantasse sozinha, algum destaque maior para a participação dela. Essa ausência não diminui a qualidade da música, é mais uma questão pessoal minha, pois sempre achei “estranho”, por assim dizer, quando alguém participava de uma música somente em backings ou coisas do tipo (a exemplo da participação de Sebastian Bach na versão de “Careless Whisper” da banda Kiara Rocks, que é resumida a alguns backings quase imperceptíveis ao longo da música). Mas, ainda sim, é uma bela faixa que não tem nenhum demérito. Em sua letra, o eu lírico fala sobre alguém que sempre está fugindo. Fugindo de quem ele mesmo é, fugindo do lugar onde está, fugindo tanto que, de certa forma, está se perdendo em seus propósitos e tornando a si mesmo uma memória.
“Dukkha”, a quinta faixa, divide o álbum exatamente no meio e, com seus 1:21 de duração, serve como uma introdução para o segundo ato da obra. À título de curiosidade, o termo “Dukkha” é um termo em Pali (língua supostamente falada por Buda) que significa “sofrimento”. É considerada a primeira nobre verdade do Budismo, ou seja, um de seus princípios fundamentais. É uma faixa um tanto interessante por ser levada exclusivamente com um violão e um trompete. Em sua simplicidade, “Dukkha” realmente nos passa a emoção de um sofrimento, uma perda, algo triste.
A primeira faixa do segundo ato, “High”, mantém essa mudança de energia feita pela faixa anterior. Enquanto na primeira metade todas as faixas tinham uma energia de certa forma, mesmo que em uma vibe mais intimista, “High” já começa lenta, mais ambientada. Ao contrário de músicas anteriores, onde a vibe melancólica foi rapidamente mudada para uma mais enérgica, “High” mantém a melancolia ao longo de seus 6:50 de duração. A ambientação da música somada aos vários efeitos colocados na voz de João trazem uma sensação de realmente estar “chapado” (uma das traduções de “high”) enquanto faz alguma reflexão sobre si mesmo e sua vida. A letra confirma esse sentimento, de certa forma, falando de alguém que pensa muito sobre o que vai acontecer e se afoga em ansiedade, ficando cada vez mais sozinha à medida que deixa seus pensamentos lhe tomarem.
A faixa seguinte, “N.P.C”, é a mais longa do álbum, com surpreendentes 10:26 de duração. É uma faixa com mais energia que a anterior, porém mantém a melancolia, ao contrário das faixas iniciais. É incrível que, apesar do tamanho da faixa, a letra tem somente 7 versos, o restante se dá inteiramente com instrumentais que variam do mais lento ao mais enérgico e que, com certeza, comunicam muito mais do que a letra. O título “N.P.C” provavelmente tem a ver com a sigla usada em jogos, que significa “Non-Playable Character”, ou seja, um personagem que está presente em um jogo, mas não é possível de ser controlado pelo jogador. Na letra, existe um trecho ” Why should I trust my uneventful endeavours, to save you from yourself”, e creio que é aqui que possa se fazer a ponte com o título, visto que “uneventful endeavours” pode ser traduzido como “esforços/tentativas sem intercorrências”, ou seja, ações imutáveis, tal como se o eu lírico não se sentisse no controle das situações e de suas atitudes em relações a elas, se sentindo, de certa forma, como um “N.P.C”.
“Sentience” é uma faixa que emenda diretamente com “N.P.C” e tem uma introdução bem diferenciada, devido ao uso de um synth que dá uma sensação de algo vindo do espaço (sabe aqueles barulhos de desenho animado quando se chega na cabine de pilotagem de uma nave? Exatamente isso). Instrumentalmente, a faixa segue o padrão caótico e extremamente bem executado das outras. Quanto à temática, “sentience” significa “senciência”, que é a capacidade dos seres de ter percepções conscientes do que acontece com si mesmo e o que os rodeia (basicamente o que difere os humanos dos animais). Na letra, o eu lírico passa por uma jornada de autoconhecimento e compreensão de seus próprios sentimentos, o que explica o título. A faixa ainda conta com a participação do produtor Júlio H. Miotto, apesar de não ficar especificado em quê exatamente.
O álbum se encerra com “Samsara”, segundo single de “Depiction”. Segundo a própria banda, “Samsara” é uma música que fala de ciclos e é a primeira música onde a banda experimenta com influências da música brasileira misturadas com sua sonoridade padrão. A introdução já te localiza em meio a essa aventura que é “Depiction”, com vários barulhos de televisão e sirenes, que fazem você se sentir em meio a uma metrópole caótica. Instrumentalmente, a música vai bem para o lado do rock progressivo com frases instrumentais quebradas e um vocal bem clássico do estilo. Os minutos finais de “Samsara”, acompanhados de um fade-out suave dão a sensação de encerramento, é como uma despedida da banda para os ouvintes do álbum. No final, uma flauta acompanhada de um synth dão uma última elevada no espectador antes do fim definitivo.
Em resumo, “Depiction” é uma obra digna do trabalho posto nela. É um álbum incrivelmente produzido e incrivelmente executado, que traz muito além do que está dito ou escrito. É uma obra que te faz sentir tudo, mesmo com poucas palavras cantadas pelo vocalista João Cardoso, mostrando que a banda sabe compor de forma a passar sentimentos complexos através de sua música.
Particularmente, sinto que minha análise foi muito rasa ainda em relação à complexidade do que é “Depiction“, minha falta de costume de ouvir obras mais complexas e conceituais, com instrumentais tão bem trabalhados, não me dá uma capacidade grande de analisar este tipo de som. Mas espero que tenha conseguido absorver uma parte do que a banda quis passar com o álbum.
No fim das contas, “Depiction” é um álbum maravilhoso, onde qualquer um pode encontrar algo para si. No entanto, recomendo que o álbum seja sempre ouvido completo, pois ele foi organizado de forma a levar o ouvinte em uma viagem, e, apesar das músicas individualmente serem ótimas, ao ouvir faixas isoladas, você perde um pouco do significado.

Data de lançamento: 03 de Março de 2020
Gravadora: Calamar Sounds e Big German Productions
Tracklist:
01. Viva o Som!
02. Inner Selfish
03. Deadlock
04. Escape
05. Dukkha
06. High
07. N.P.C
08. Sentience
09. Samsara
Formação:
– João Cardoso (vocal e guitarra)
– Tissu (guitarra)
– Alemão (baixo)
– Ravi (bateria)
Pessoal adicional:
– Jessica Waltrick (vocais em “Escape”)
– Júlio H. Miotto (vocais em “Sentience”)
Produção:
– Júlio H. Miotto
Arte:
– Dany Ribeiro