O Doom Metal habita nas catacumbas do underground e é lá onde ele melhor sobrevive e se desenvolve de acordo com suas características. Assim como um animal abissal, que se adapta a total ausência de luz e a pressões aquáticas inimagináveis para se tornarem seres únicos e iluminados, o Doom utiliza as trevas, o frio e as condições nauseabundas de seu habitat como alimento e insumo para sua beleza, essência e maleabilidade, únicas dentro dos meandros do Heavy Metal. Todavia, da mesma forma que sabemos da existência dos animais que ocupam as extremas profundezas dos oceanos, existem representantes do Doom que conseguem colocar a cabeça para o Sol e se afirmarem entre uma maior população. Candlemass e Paradise Lost, para ficarmos em somente dois exemplos, que o digam.

Na Paraíba, o Doom Metal tem mostrado tanta força para subir dos abismos do underground que já existe até um festival especializado no estilo em João Pessoa. Um dos responsáveis por essa emersão do Doom paraibano é Tiago Monteiro, vocalista da banda de Death/Doom Aporya e da banda de Thrash/Death Flamenhell. Ele, juntamente com o guitarrista Mad Ferreira, da banda de Metal/Hardcore Sea Of Monsters, idealizaram um novo projeto de Doom, batizado de Ode Insone. A proposta desta nova banda é praticar um Gothic/Doom com influências de Gothic Rock, Death melódico e letras em português.

Estranhou? Cabe aqui um parêntese. Gothic Metal e Gothic Rock são dois estilos bem distintos musicalmente falando. O Gothic Metal não é uma versão “metalizada” do Gothic Rock, assim como o Prog Metal é em relação ao Prog Rock. O termo comum “gótico” simplesmente deriva das letras introspectivas e sentimentais, única coisa comum aos dois estilos. Metal Gótico nada mais é do que Doom Metal orquestrado, enquanto o Rock Gótico é filho do Pós-Punk, movido a ritmo seco, contrabaixo em posição de protagonista e mil efeitos nas guitarras para que a mesma soe melancólica. Fecha parênteses.

Pois bem. Ao projeto foram agregados o guitarrista Lucas Souza, o baixista Victor Laudelino e o baterista George Alexandria. Com esta formação foi registrado o primeiro fruto do Ode Insone, lançado no apagar das luzes de 2018. Intitulado Relógio, o debut do Ode Insone traz oito músicas que exploram muito bem a proposta enunciada dois parágrafos acima. Quem já conhece o Aporya pode até perceber uma coisa ou outra em comum entre a sonoridade das duas bandas, logicamente, pois o mentor é a mesma pessoa. Mas o lado Gothic Metal foi muito bem trabalhado de modo a dar independência e identidade ao som do Ode Insone. As duas primeiras faixas do álbum, Perfume Negro e Plumeria Rubra, mostram um som sentimental, com letras bastante compreensíveis (graças a boa pronúncia de Tiago Monteiro), lembrando muito o Gothic Metal dos anos 90 e o Melodic Death/Doom, principalmente Swallow The SunThe Gathering e Paradise Lost fase Draconian Times. A estrutura das composições é parecida: intro, vocais sussurrados por cima de bases limpas, refrão com vocal gutural, mais vocais sussurrados por cima de bases limpas, clímax e final. Ambas as músicas ganharam clipes. A faixa de número 3, Folhas de Outono, segue um padrão parecido, mas ela se destaca bastante por ser tocada em Sol Menor, o que deu a esta composição um colorido, aliás, um negrume escarlate, como uma tempestade por volta de seis e meia da tarde, às margens de um revoltoso mar. Ainda, algumas influências de Blackgaze (Alcest e Deafheaven, por exemplo) podem ser notadas em alguns fraseados de guitarra a partir do meio da composição. A primeira metade de Relógio encerra-se com a instrumental Míngua, toda tocada e solada em timbres limpos e acompanhada de violoncelos.

No segundo ato de álbum, a coisa se mostra bem mais variada e enriquecida. Constata-se isso logo na faixa de nº 5, Sublime Abismo; bastante agressiva, apresenta riffs e bases pesadas, baixo muito pulsante, vocais ao mesmo tempo atmosféricos e monstruosos e temperada muito pedal duplo. Lembrou bastante as partes mais rápidas do já mencionado Draconian Times, do Paradise Lost. A faixa 6 é a que carrega o nome do álbum e volta a apresentar a fórmula das primeiras músicas, apesar de ter um andamento um pouco mais acelerado. E é aqui que as influências de Rock Gótico começam a aparecer de verdade. Elas emergem com toda a força em Versos da Dor; no melhor estilo The Sisters Of Mercy com mais peso, a composição começa com ritmo seco de bateria e contrabaixo sozinho cuidando da parte melódica (faltou só um chorus no baixo para que a aura cabulosa do Rock Gótico ficasse ainda mais acentuada). Quando menos se esperava por mais destruição, eis que ela chega com a impiedosa Ode Insone, a mais rápida e agressiva do álbum, fazendo valer com muita força as influências de Death Metal melódico que a banda sofre e que serve como o golpe de misericórdia que perfura a fronte do ouvinte. Além das oito faixas regulares, o Ode Insone registrou também um cover bastante criativo e pessoal para a música O Tempo Não Pára, de Cazuza, o qual vale muito a pena ser ouvido.

O álbum foi muito bem produzido ao longo de sua criação em estúdio, com todos os instrumentos aparecendo bem nítidos até aos ouvidos mais leigos (sinta em sua cara como se fossem punhos de fúria o baixo gorduroso de Victor Laudelino atacando sem piedade suas cordas em Sublime Abismo). A capa também foi elaborada com muito primor. Seu fundo enegrecido enfeitado com tons de verde inverte em versão plástica a melancolia e a saudade que o áudio insone perpassa ao longo de suas oito faixas.

Apesar do notório conhecimento dos integrantes da banda, especialmente Tiago Monteiro, sobre os estilos trabalhados no Ode Insone, há alguns pontos a serem levados em consideração. Pareceu-me haver um excesso de partes sussurradas por cima de bases limpas e simples. Elas ocupam boa parte do tempo das músicas onde aparecem, em várias faixas. Não sugiro a extinção deste elemento musical, que surge como forma de transparecer melhor o lado sentimental da música. Mas seu excesso pode tornar a audição cansativa e monótona, fatalmente impedindo o ouvinte final querer ouvir o restante do trabalho e descobrir os outros elementos, mais variados e/ou agressivos. Outra sugestão fica para balancear melhor dentro do álbum as músicas mais introspectivas com as mais agressivas e rápidas. Relógio se tornou uma balança muito desleal, com as composições mais calmas e sussurradas na primeira metade e todas as mais agressivas e rápidas na segunda.

Por outro lado, Ode Insone mostra em Relógio que o Nordeste brasileiro possui bandas de Doom Metal deveras criativas e inebriantes. O bem compassado triângulo Gothic/Doom, Rock Gótico e Death Metal melódico rendeu um amálgama consistente, um som com identidade, belo como uma plumeria, plúmbeo como um entardecer nublado, peculiar como os monstros dos mares. Emergindo de fossas profundas, Ode Insone aparece como uma criação bruta, que será lapidada de acordo com o talento de seus criadores, e emitira ainda mais forte seu brilho vagalúmico e abissal.

Relógio – Ode Insone (independente, 2018)

Tracklist:
01. Perfume Negro
02. Plumeria Rubra
03. Folhas de Outono
04. Míngua
05. Sublime Abismo
06. Relógio
07. Versos de Dor
08. Ode Insone

Line-up:
Tiago Monteiro – vocais
Mad Ferreira – guitarras
Lucas Souza – guitarras
Victor Laudelino – guitarras
George Alexandria – bateria

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