Uma biografia é um documento, um relato sobre fatos reais de uma vida real, mas isso não significa que o produto – no caso, o livro – não possa vir a servir como uma peça de entretenimento.
E essa palavra, entretenimento, tem tudo a ver com a banda biografada. O histórico de excessos do Motley Crue – dentro e fora do palco – nos dá uma boa ideia do que iremos encontrar nas páginas. Recentemente, tive oportunidade de ler a bio de outro artista famoso por esses mesmos padrões, Iggy Pop, mas embora o autor desta última tenha sido muito meticuloso, as páginas pareciam não se mover. O oposto disso ocorreu na leitura de “The Dirt”, lançado pela Editora Belas Letras, com tradução de Paulo Alves, onde as páginas voavam e não dava vontade de largar o livro.
Para a sua concepção, a banda trabalhou com o escritor Neil Strauss e produziram horas de entrevistas, onde também foram ouvidos ex-empresários e alguns executivos de gravadoras. Caso você queira saber sobre a relação do livro com a recente cinebiografia, devo dizer que esta última é bem fiel, e por vezes eu me vi rememorando cenas da película enquanto lia. É claro que uma coisa ou outra foi alterada no filme, para melhores efeitos dramáticos, mas que não o invalidam sob qualquer forma. A própria banda, de certa maneira, já fez também a sua própria adaptação, ao compor o álbum “Saints of Los Angeles”, de 2008, cujas canções passeiam pelas histórias aqui relatadas.
A narrativa avança através de capítulos onde cada um dos integrantes torna-se a voz principal a conduzir o fio. Não é preciso ir muito longe para perceber a disfuncionalidade que – ironicamente – faz a banda funcionar. Cada um dos integrantes tem sua própria e distinta forma de interagir com o mundo ao redor, apesar de haver inevitáveis pontos em comum, mesmo entre o trio Neil/Sixx/Lee e Mick Mars, que se mantém um pouco à parte do comportamento errático dos demais. Infelizmente, a verborragia dos três supera a introspecção deste e, ao final, lamentamos por não haver mais espaço para o guitarrista, que permanece como um dos personagens mais interessantes da jornada da banda.
O único problema do livro – e que de modo algum pode ser considerado um defeito – é o fato de sua publicação no Brasil ter sido muito protelada. Antes tarde do que nunca, naturalmente, mas como a obra é de 2001, sua conclusão soa incompleta perante os quase vinte anos de histórias que o sucederam. Assim, o lançamento de “New Tattoo” é praticamente apenas uma menção, complementada pelas notas de rodapé que são mais constantes nessa parte do livro, de forma a acrescentar algumas poucas atualizações de última hora. De qualquer modo, o conteúdo presente é robusto, detalhado e carregado da arrogante sinceridade que se poderia esperar. Em “The Dirt”, o leitor encontrará diversão e drama em medidas equivalentes e, se for possível destacar uma parte específica do livro, a passagem do vocalista e guitarrista John Corabi é uma das mais interessantes, inclusive pelo fato de nos fornecer alguns detalhes sobre como funciona a indústria da música por trás dos holofotes.
Independente das preferências musicais, não tenha dúvidas de que “The Dirt” é uma das melhores biografias já realizadas. Pode conferir sem medo.