Provavelmente o nome dessa banda é familiar para você. Dá aquela sensação que em algum momento, em algum lugar, você já leu ou ouviu o nome Melanie Klain, e é incômodo como talvez não consiga se lembrar. A familiaridade é absolutamente compreensível: afinal, Melanie Klein (com E, ao invés do A que a banda adotou para diferenciar a grafia sem modificar a pronúncia) é o nome de uma das psicanalistas mais famosas da Psicologia. Nascida em Viena (Áustria) no fim do século XIX, a psicoterapeuta era intensamente influenciada pela obra psicanalítica de Sigmund Freud, que tem importância indiscutível para a forma como entendemos nossa própria psique no que diz respeito à consciente e subconsciente, por mais que muitos não se deem conta disso. Se você compreende e aceita que suas atitudes e ideias conscientes são resultados de influências e impulsos subconscientes, então você tem consolidado o conceito freudiano.
Pós-freudiana, Melanie Klein foi responsável por avanços na compreensão do mecanismo subconsciente da psique, tendo grande influência no âmbito acadêmico.
Se o homem iluminista tinha as débeis certezas de empoderamento antropocêntrico, de que poderia vergar a natureza e suas ações como bem entendesse com base apenas na lógica e na razão – ou seja, o homem é 100% consciente, não existindo subconsciente -, a psicanálise veio para retirar das mãos dele todo esse otimismo e descentralizar o ser humano de si mesmo. Em outras palavras: somos influenciáveis a nível subconsciente, e mesmo nossas ações mais lúcidas e conscientes têm fundamentos subconscientes que nós mesmos frequentemente não identificamos.
Sigmund Freud e Melanie Klein são duas figuras que fizeram uma verdadeira análise da psique. Esse mecanismo de influências subconscientes é ativamente utilizado por governos e políticos através da propaganda, da sugestão visual e sonora, que molda silenciosamente as opiniões, lógicas, maneiras de pensar das massas e conquista apoio e votos. Se você concorda com isso – provavelmente sim -, então, novamente, tem consolidado o conceito freudiano.
Ajuizados, todos temos críticas governamentais. Todos temos críticas ao Estado. Todos temos críticas à inércia e passividade da massa – especialmente a banda Melanie Klain. Se os pensadores/psicanalistas analisaram a psique, o Melanie Klain analisa o caos, o caos social, político e religioso brasileiro.
“Análise do Caos” é justamente o nome do álbum de estreia do conjunto, fundado em 2007 na cidade de Mococa (SP). Lançado em meados de 2016, o disco destila, ao longo de quase uma hora de duração, um aglomerado lúcido de críticas aos mecanismos que regem a sociedade, ao mesmo tempo em que apresenta uma musicalidade sólida, criativa e muito bem construída – sem mencionar os vários códigos espalhados pelo encarte, dando um ar ainda mais inteligente ao trabalho.
Musicalmente, não é tão absurdo dizer que é uma sonoridade complicada de definir. Após a intro, composta como um irônico desabafo em estilo circense para abrir um espetáculo que de engraçado não tem nada, um emaranhado de influências são sentidas coesamente, algumas mais fortes que outras que se resumem a certas nuances. De pegada moderna, o que é mais claramente sentido é o Nu Metal, mas outros estilos como Hardcore, Alternative Rock e Industrial Metal também são amplamente adicionados. Para melhor visualização, pode-se dizer que a musicalidade dos caras é fortemente influenciada por Slipknot, Korn e um pouco de System of A Down, ao mesmo tempo em que é possível sentir também aquela sensação de Adema, Project46, ou até mesmo traços de bandas de Gothic Metal no estilo de Moonspell, como nos casos de calmaria atmosférica que algumas canções têm, onde o vocal se torna grave, narrado e retórico.
Dois vocalistas dão o tom das críticas: Duzinho (responsável pela maioria dos vocais), que apresenta uma técnica mais grave e driveada; e Chapolin, que aparece com menos frequência mas contribui com guturais rasgados, frequentemente em tons de ironia, além de também se ocupar com a guitarra. Violla (a outra guitarra), a bela Vic Escudero (baixo) e Pedro Bertti (bateria) completam a formação.
Se contar com dois vocalistas teatrais dá maleabilidade e versatilidade às linhas vocais, imagina se toda essa abertura se estender ao instrumental? Pois é isso que acontece. A última coisa que “Análise do Caos” é, é reto. Pelo contrário – cada uma das canções apresenta diferentes andamentos entre si e dentro de si mesmas, alternando entre momentos mais pegados, outros mais amenos, passagens mais atmosféricas, solos frenéticos, guitarras limpas, e variados outros recursos que tornam o som bastante plural e interessante.
Apesar de toda essa ambição e de, fatualmente, terem conseguido ser bastante criativos, em determinadas passagens você sente que entendeu de onde eles se tiraram aquela ideia daquela passagem, daquele som, daquelas notas, daquele tom – muitas oriundas de músicas do Slipknot e do Korn, algumas até “imitando” aquela postura meio “cansada” e “paranóica” do Corey Taylor no auge do Slipknot. Isso atrapalha um pouco a noção de originalidade e criatividade dos caras, pois não foi tão bem “mascarado” – lembrando sempre que é claro que toda banda e músico tem suas influências e inspirações, só que é interessante mascarar pra não parecer uma cópia – mas não dá pra descartar as demais passagens e todos os conectivos que, juntos, resultaram em excelentes canções. Sem exageros!
Vale dedicar algumas linhas desse texto aos códigos espalhados pelo encarte, pois são bastante interessantes! Em “Diálogo”, por exemplo, há uma série de 0 e 1 em códigos binários, que se combinam para significar “não seja um filho da puta”. Na sequência, em “Fé Cega” (bom, e que fé não é? Se a fé for fundamentada, torna-se esperança, e não fé – o requisito para ser fé é acreditar sem qualquer prova ou evidência. Logo, a fé obrigatoriamente cega), encontramos números romanos que indicam a latitude e longitude de Mococa, cidade natal dos rapazes.
“Guerra” já traz um código Morse que significa “mas se não há justiça, não pode haver lei” – bom, já vejo a coisa pelo inverso: a lei existe basicamente porque não há justiça plena. Se houvesse justiça, não precisaria haver leis. Mas todos sabemos que elas foram feitas também para controle das massas. De qualquer forma, essa frase codificada no código Morse estará no próximo disco da banda, em uma faixa sobre a Ditadura Militar brasileira, que se estendeu de 1964 a 1985.
“Marcas do Abandono” já traz uma frase escrita ao inverso e cortada horizontalmente pela metade: “eu morri amando cada um de vocês”. Na parte de “Rede Social”, é bem inteligente como eles se aproveitam de um tema moderno para utilizar QRCodes e criptografias para codificar suas fotos e verdadeiros nomes.
Por fim, na faixa-título, encontramos não um código, mas uma recordação e respeito à humildade como tudo começou com a banda. A metade esquerda da letra está impressa no padrão do encarte, mas a outra metade está em folha de papel de caderno, como a música teria sido originalmente composta, com rabiscos e tudo o mais – afinal, foi assim que a banda começou: com papel e caneta.
“Análise do Caos” é aquele tipo de álbum que mesmo sem uma produção top de linha, ele ainda soa absolutamente bem e isso não se torna exatamente um problema, diante de todo o excelente trabalho. Se tudo seguir dando certo para o conjunto, quem sabe essa ótima obra não ganhe um remaster? De qualquer forma, esse debut é um pontapé inicial que supera bastante as expectativas para um álbum de estreia, e é possível sentir que poderão render e amadurecer ainda mais no futuro. Mesmo com toda a dedicação, a sonoridade ainda não está seguramente estável. Ainda soa aventura, uma aventura onde a empolgação e a dedicação venceram, mas ainda se faz necessária aquela contribuição da experiência, da maturidade. O Melanie Klain vai chegar lá.
Espero que, junto da natural melhora da desenvoltura musical, também venha o aprofundamento lírico. Mesmo que as letras (todas compostas por Duzinho, exceto por “Carta de Um Suicida”, composta por ele e Pedro Bertti) sejam bem escritas e demonstre que o compositor é lúcido quanto ao cenário à sua volta, a argumentação muitas vezes ainda é um tanto senso comum, na minha percepção. Falar que está tudo uma merda, que a massa é manipulada, que a religião ajuda, que a mídia também o faz, etc., nem todos estão alertas disso, mas continua sendo superficial. Estou certo de que a banda tem a capacidade de maturar e aprofundar isso. Dá pra sentir. A “socianálise” foi bem feita, ainda assim.
Sólido 8,5.
Formação:
Duzinho (vocal);
Chapolin (vocal/guitarra);
Violla (guitarras);
Vic Escudero (baixo);
Pedro Bertti (bateria).
Faixas:
01 – Intro
02 – Abençoados Por Deus
03 – Diálogo
04 – Fé Cega
05 – Guerra
06 – Marcas do Abandono
07 – Lavagem Cerebral
08 – Cartas de Um Suicida
09 – Cólera/Nação
10 – Rede Social
11 – Análise do Caos
12 – Reflexão