Resenha: Kipelov – Zvezdi I Kryesti (2017)

As grandes bandas russas de Heavy Metal, como Aria, Kipelov ou Master, não conseguem expandir as suas obras muito além de suas fronteiras por causa das barreiras impostas pelo idioma. Umas das excessões é o Arkona, porém com a salva-guarda de que esta é uma banda de Folk Metal, o que permite que se use o idioma local sem maiores problemas. O russo não é lá uma língua muito simpática; prova disso é o seu estranho alfabeto, o cirílico, que é composto por 33 letras, sendo 10 vogais. As bandas locais, em sua maioria, fazem questão de cantar em sua língua vernácula. Se o sucesso e o reconhecimento mundo afora não chegam, na Rússia, eles vem de sobra. Caso da banda Kipelov.

O grupo fundado em 2002 logo após a debandada de três dos cinco membros do Aria, o “Iron Maiden russo”, liderados pelo vocalista Valery Kipelov, se tornou um dos maiores e mais renomados nomes da música russa, com direito a liderança nas paradas locais e presença maciça no rádio, na TV e em festivais. Depois da estreia com o ótimo Reki Vremion em 2005 e do excelente e pesado Zhit Vopreki de 2011, a banda volta com seu terceiro full-length, Zvezdi I Kryesti, lançado recentemente via Navigator Records.

Produzido por Mike Plotnikoff (Scorpions, Saxon, In Flames, etc.), este disco mostra o Kipelov de sempre: um Heavy Metal tradicional, pesado e moderno, não “modernoso”, com alguns elementos sinfônicos e as tradicionais baladas que Valery Kipelov compõe como ninguém. O álbum traz dez músicas que apostam numa ótima alternância entre momentos pesados e virtuosos com partes emotivas e tristes.

Após uma introdução orquestral daquelas brutas, que só os russos compõem, a faixa-título dá as caras com um riff em palhetada alternada e um refrão pesado e grudento. E já de cara a dupla de guitarristas Vyacheslav Molchanov e Andrew Golovanov derrama toda a sua virtuosidade em solos técnicos, mas bem encaixados na proposta sonora da banda. Algo que será recorrente ao longo de todo o disco. A faixa 03, Rozdyoni Letat, parece ter saído das entranhas de Painkiller, clássico do Judas Priest. Nesta música, é a vez do baixista Alexey Kharkov mostrar sua técnica na parte do meio.

Dama Pik tem um toque comercial, mesmo que seja pesada e com o contrabaixo a socar a cara do ouvinte. Então, todo o peso que dominava desde o começo do disco é quebrado pela lindíssima balada Ledyanoi Dãjd, onde Kipelov explora todo o feeling de sua voz, forjada em um timbre único e abençoado. Ouvir essa música te faz imaginar observando o mar sem qualquer luz artificial, somente a do luar. O sotaque russo parece acentuar ainda mais a beleza das músicas da banda, bem como reforça o peso das músicas mais agressivas. Um idioma bastante versátil e que se adapta bem a qualquer situação artística, assim como o líquido toma a forma do recipiente onde é alocado. Belyi Ad tem influências da NWOBHM, não deixando de chamar a atenção o baixo distorcido de Kharkov apoiando as guitarras.

A próxima faixa, a de numeral 07, é um dos destaques do álbum. Viche é pesada e apresenta conduções seguras por cima de onde Kipelov apresenta todo seu dote em criar linhas vocais grudentas, mesmo que o idioma mal seja compreensível. Outro momento emocionante do disco é a balada Zhazhda Nebazmãzhnogo, um Blues safado e triste em que o vocalista lança mão de sua mágica para apelar às suas lagrimas, com direito inclusive a solo de Hammond. Logo após, mais um momento Judas Prist com Temnaya Bashnya. E, pela primeira vez na história da banda, Kipelov cede seu espaço de protagonista para que o guitarrista Vyacheslav Molchanov cante a música com sua voz pesada e “modernosa”. Aqui sim, posso finalmente destacar a levada do baterista Alexander Manyakin em bumbos duplos e nos tom-tons. Manyakim sempre foi um baterista metódico e discreto desde os anos 80 quando era baterista do Aria, sempre se resumindo a levadas e viradas simples. Mas surpreende quando resolve se destacar, mostrando todo o seu talento oculto.

Ainda sobre esta faixa em específico, ela sai de um Metal Judas Priest e entra em um momento Candlemass, altamente Doom, e depois descamba para um Thrash com solo neoclássico. Por isso que esta banda não é somente o trabalho solo de Valery Kipelov. Aqui, cada músico tem o seu talento e tem o seu espaço para mostrá-lo. O disco chega ao seu final com um épico de 10 minutos, a cadenciada e marcial Kosovo Polye. Valery toma o microfone de volta para mais uma vez apelar para a emoção com suas linhas vocais tristes, como a música pede, já que ela fala dos desastres da Batalha do Kosovo, ocorrida na Idade Média.

Em comparação com o álbum anterior, Zhit Vopreki, Zvezdi I Kryesti é um álbum menos agressivo. Senti falta de mais composições pesadas e rápidas. Por outro lado, a banda esteve mais inspirada do que nunca para compor músicas harmônicas e belas. Foi feito um ótimo balanceamento entre as músicas pesadas e as lentas, o que criou uma bela briga, onde só quem ganha é o ouvinte. Outro ponto a se destacar é que Kipelov não faz questão de resgatar a sonoridade de sua antiga banda, o Aria. O Heavy Metal de Kipelov pouco lembra o Iron Maiden. Parece Judas Priest da fase Painkiller casando com Scorpions, com algumas influências modernas.

Alexsander Mannyakin, Vyacheslav Molchanov, Valery Kipelov, Alexey Kharkov e Andrew Golovanov

Kipelov já é um avô sessentão, veterano de guerra, pois desafiou o enclausurante regime soviético com o Aria nos anos 80. Logo, sua voz já não tem o mesmo alcance. Mas o que ele perdeu de força na voz, ganhou em técnica e em feeling. É como o centro-avante que fica o tempo todo na área, pouco se movimentando, mas que espera a oportunidade certa para fazer o gol do título e virar ídolo. Como ele não tinha espaço para compor em sua antiga banda, criou a sua. Foi a melhor coisa que Valery fez em sua carreira, pois mostrou seu talento e o monstro de músico que é. Sem ser fominha: revelou dois jovens guitarristas e um baixista donos de técnica absurda, mas que não deixam de lado o feeling quando este precisa de seu espaço. E Kipelov continua com seu fiel escudeiro, o baterista Manyakim, que o acompanha desde os anos 80.

Vale destacar também a estonteante arte de capa criada por Andreas Marschall (Hammerfall, Blind Guardian, Kreator, etc.), que mais parece um troféu a carreira do cantor. Se os russos têm fama de durões e frios, Kipelov faz questão de provar que o povo daquele país também tem orgulho e sentimento pela sua história, que dá insumos para que sejam criadas músicas tocantes quando o momento pede, e pesadas quando chega a hora de colocar os demônios para fora. Carregando as cruzes de sua história, Valery e Cia. hoje se tornaram estrelas. Em tempo: o Metal russo tem muito a ser explorado além do Arkona mundo afora. Os grandes estão é lá.

Zvezdi I Kryesti – Kipelov (Navigator Records, 2017)

Tracklist:
01. Intro
02. Zvezdi I Kryesti (Estrelas e Cruzes)
03. Rozdyoni Letat (Nascido para Voar)
04. Dama Pik (Dama de Espadas)
05. Ledyanoi Dãjd (Chuva Congelante)
06. Belyi Ad (Inferno Branco)
07. Viche (Acima)
08. Zhazhda Nebazmãzhnogo (Sede do Impossível)
09. Temnaya Bashnya (Torre das Trevas)
10. Kosovo Polye (Campo do Kosovo)

Line-up:
Valery Kipelov – vocais
Vyacheslav Molchanov – guitarras, vocais em Temnaya Bashnya
Andrew Golovanov – guitarras
Alexey Kharkov – contrabaixo
Alexander Manyakin – bateria

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