Sabe quando você está lendo o seu livro preferido? Fantasia, suspense, mangá, romance… Não é verdade que você cria o mundo onde se passa história em sua mente? Cada paisagem, cada personagem, com seu figurino, feições e personalidade, enfim. Cada detalhe. Você cria tudo na sua imaginação. E, à medida que a sua leitura avança, sua curiosidade e empolgação com o que virá pela frente vai se tornando cada vez maior.

Imagine isso tudo, tendo como trilha sonora um Heavy Metal de muita qualidade e bom-gosto, com técnica e feeling caminhando lado a lado, e com os melhores cantores do estilo interpretando cada personagem. O Ayreon proporciona esta sensação a você.

Antes que o Avantasia tomasse de assalto o mundo do Metal melódico com suas óperas, o Ayreon já existia, desde 1995, idealizado pelo multi-instrumentista holandês Arjen Anthony Lucassen. A proposta sempre foi a mesma: contar histórias de ficção, geralmente viagens através do tempo e do espaço (nem sempre), onde cada personagem é interpretado por um vocalista diferente. O instrumental? O bom e velho Heavy Metal Progressivo. Não aquele intrincado do Dream Theater, mas aquele puro e gostoso Prog Rock setentista, com o peso do Heavy Metal moderno. Referências a Yes ou Rush são facilmente notadas aqui ou ali. Todavia, Arjen tem um dom: construir o som único do Ayreon.

Arjen Lucassen e seu fiel companheiro, o baterista Ed Warby

O Ayreon lança em 2017 seu nono álbum de estúdio, intitulado The Source, lançado nacionalmente por iniciativa da Hellion Records. A saga contada em The Source começa ambientado no planeta Alpha, que atinge um momento de sua história em que entra em colapso devido a problemas ambientais e fortíssimas crises políticas. Neste ínterim, o Presidente cria um programa de computador conhecido como “Frame”, a fim de controlar e conter todos os desastres que assolam Alpha. Mas o tiro saiu pela culatra, e a inteligência artificial de “Frame” superou todo que havia de mais moderno na época, e virou um agravante para a hecatombe. Algumas poucas pessoas conseguiram fugir de Alpha, e de “Frame”, graças uma espaçonave chamada “Starblade”, rumo a um novo planeta todo formado por água, e que era açoitado por chicotadas altamente radioativas da estrela “Sirrah”. Um dos membros da tripulação era um químico, que desenvolveu uma espécie de pílula que ficou conhecida como “The Source” (a fonte), que concedia a quem a tomasse imortalidade, sobrevida embaixo d’água, resistência às radiações e capacidade de se comunicar por telepatia. Mas o remorso por ter deixado parentes sob a condenação eterna, misturado com a ganância de conquistar o novo planeta, cria um ambiente hostil entre os tripulantes.

A escalação do técnico Arjen Robben… (opa!) Lucassen envolve algumas das melhores vozes do Metal mundial: Hansi Kürsch, Russell Allen, Floor Jansen, Simone Simons, James LaBrie e Tommy Karevik são nomes mais que conhecidos e consolidados. A estes, se juntaram Tommy Rogers (Between The Buried And Me), Nils K. Rue (Pagan’s Mind), Michael Mills, Michael Eriksen (Circus Maximus), Zaher Zorgati (Myrath) e… Tobias Sammet, a mente por trás do Avantasia, o maior nome das Metal Operas. E não, Tobias e Arjen não são rivais.

The Source começa com uma peça progressiva de 12 minutos chamada The Day That The World Breaks Down, onde todos os cantores já deixam suas amostras e enriquecem sobremaneira o instrumental arrojado e variado, que vai do Metal Progressivo pesado até o Jazz e o Blues, passando pelo Prog setentista. Sea Of Machines é mais calma, mas não menos variada. Simone Simons aproveita e derrama toda a sua doce voz em uma interpretação hipnotizante. Everybody Dies começa Folk e ruma para bases industriais. Uma das especialidades da música de Arjen é unir o tradicional ao moderno: timbres psicodélicos transitam por cima de bases pesadas e até mesmo eletrônicas. Ventos setentistas iniciam a pesadíssima Star Of Sirrah. Uma condução Folk Metal carrega a música All That Was, onde Simone e Floor fazem um dueto de deixar os olhos marejados. Run! Apocalypse! Run! é um Power Metal com pitadas de Deep Purple, e aqui é a praia de Tobias Sammet, Russell Allen e de Hansi Kürsch, a voz que faz a Terra tremer desde os anos 80 com seu Blind Guardian. Tommy Karevik até que se esforça, mas sua voz cheia de falsetes à la “calouro de The Voice” irrita em vários momentos. O CD 01 se encerra com a introspectiva Condemned To Survive.

Findado o CD 1, cabe aqui umas pinceladas. Arjen Anthony Lucassen já provou que lançou o melhor e mais variado trabalho de sua carreira como músico. Simone Simons e Floor Jansen dão um show à parte. Tobias, Hansi e Russell formam um trio de ataque matador. Mas duas surpresas muito me alegraram em The Source: a primeira, Michael Mills, que faz o papel do Androide TH-1. Suas participações sempre são montadas com várias camadas de voz sobrepostas, todas gravados por Mills, sozinho, numa aula de afinação e de harmonia. Nestes momentos, é impossível não lembrar dos trabalhos vocais do Queen. E a segunda surpresa é de responsabilidade do tunisiano Zaher Zorgati, que é dono de uma voz encorpada e imponente. Guarde este nome.

O CD 2 é mais contido que o 01, mas não menos pesado. Aquatic Race é cansativa, apesar de conter alguns arranjos interessantes. A faixa seguinte, The Dream Dissolves, pouco ajuda a levantar o pique novamente. Pique este que é recuperado, enfim, na cadenciada Deathcry Of A Race. E é aqui o palco de uma das passagens mais legais do álbum, quando Zaher Zorgati canta um trecho da letra em árabe, com linhas vocais que rementem à região desértica do Oriente Médio, seguido por mais um duelo Simone X Floor. Simplesmente arrepiante! Into The Ocean é Rainbow puro! Logo, estamos em território de Russell Allen, um dos melhores discípulos de Ronnie James Dio. A voz do Symphony X deita e rola!

Quando começou Bay Of Dreams, verifiquei a ficha técnica para saber se os membros do Depeche Mode também estavam no time do Ayreon. Não, os britânicos reis da música eletrônica não estão por aqui. Mas tudo bem, até porque James LaBrie chegou com toda a sua técnica e subestimada voz. Mais um Power Metal se apresenta na pesadíssima Planet Y Is Alive!, então, mais uma vez temos um show do trio de ataque Allen-Kürsch-Sammet. E , novamente, Tommy Karevik tenta estragar o show do trio com seus falsetes irritantes. Destaque para o magnânimo solo de Guthrie Govan, um dos guitarristas convidados do álbum. Uma aura pink-floydiana rega a audição de The Source Will Flow, onde Simone e LaBrie reforçam a carga emotiva. Journey To Forever é alegre, expressando a alegria da tripulação na chegada ao novo planeta, e com uma ganância tamanha que os fez esquecer das famílias que ficaram para trás no condenado planeta Alpha. A constatação do desastre e a traição do sistema cria uma atmosfera densa e pesada na música The Human Compulsion, preparando o terreno para que na última faixa, o androide TH-1 se revele o grande vilão infiltrado na nave, o “Frame” do qual todos fugiram e pensaram que haviam abandonado a deriva em Alpha. A história se encerra em aberto, com o levante do androide no novo planeta Y, e promete uma parte II para o próximo álbum.

Diante do exposto, temos aqui neste compêndio de vozes e de instrumental de altíssimo nível um dos melhores álbuns do ano, certamente. Quiçá, o melhor trabalho já lançado sob o nome Ayreon. James LaBrie prova aqui porque é um dos melhores e mais técnicos cantores do Heavy Metal (você que diz que gosta de Dream Theater, mas não gosta do LaBrie: consegue imaginar Dream Theater sem a voz dele?). Os vocais de Hansi Kürsch ficaram baixos em vários momentos do álbum; talvez sabotagem do Androide. O único ponto fraco fica por conta de Tommy Karevik, pelo o que este relator descreveu nos parágrafos anteriores. The Source teve ainda as luxuosas participações dos guitarristas Paul Gilbert (Mr. Big), Marcel Coenen e de Guthrie Govan, o shreder com mais feeling da atualidade. Fiquemos, pois, no aguardo do que Arjen Anthony Lucassen está preparando para a parte II desta saga, a História do Androide Safado E Dos Humanos Gananciosos.

Ah, sim. Será que nosso planeta Terra serviu de inspiração para o condenado planeta Alpha? Infelizmente. Mas pensemos nas coisas boas, como as vozes de Simone e de Floor, por exemplo, duelando eternamente em nossas imaginações utópicas.

 

The Source – Ayreon (Hellion Records, nacional, 2017)

Tracklist:

CD 01:
01. The Day That The World Breaks Down
02. Sea Of Machines
03. Everybody Dies
04. Star Of Sirrah
05. All That Was
06. Run! Apocalypse! Run
07. Condemned To Live

CD 02:
01. Aquatic Race
02. The Dream Dissolves
03. Deathcry Of A Race
04. Into The Ocean
05. Bay Of Dreams
06. Planet Y Is Alive!
07. The Source Will Flow
08. Journey To Forever
09. The Human Compulsion
10. March Of The Machines

Line-up:
Arjen Anthony Lucassen – guitarras, contrabaixo, mandolim, Hammond, Sintetizadores
Ed Warby – bateria

Elenco:
James LaBrie – o Historiador
Tommy Karevik – o Líder da Oposição
Tommy Rogers – o Químico
Simone Simons – a Conselheira
Nils K. Rue – o Profeta
Tobias Sammet – o Capitão
Hansi Kürsch – o Astrônomo
Michael Mills – o Androide TH-1
Russell Allen – o Presidente
Michael Eriksen – o Diplomata
Floor Jansen – a Bióloga
Zaher Zorgati – o Pregador

Convidados:
Paul Gilbert, Guthrie Govan, Marcel Coenen (guitarras), Mark Kelly (sintetizadores), Maaike Peterse (violoncelo), Ben Mathot (violino), Joost van den Broek (piano), Will Shaw, Wilmer Waarbroek, Lisette van den Berg, Jan Willem Ketelaars (vocais de apoio), Jeroen Goossens (flautas).

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