Resenha: Aria – Guest From The Shadow Kingdom (DVD, 2019)

Fundado em Moscou no ano de 1985, o Aria se aproveitou da abertura política da União Soviética para se firmar como uma das maiores representantes do Heavy Metal de seu país. Como se isso por si só já não fosse uma façanha, o Aria com o passar dos anos se tornou uma superbanda na Rússia e nos países circunvizinhos. Verdadeiros “mega-stars” em sua terra-natal, o Aria tem maciça penetração no mainstream local, sendo que cada novo lançamento seu alcança o topo das paradas russas e não raro aparecem nas televisões de maior audiência de lá. Isso tudo praticando o mais puro e clássico Heavy Metal, algo inimaginável aqui no Brasil, por exemplo. Todavia, o mais curioso é que todo esse tamanho e sucesso se concentra somente naquela região do mundo. Fora da área de influência russa, o Aria ainda é uma banda relativamente desconhecida.

Mas parece que, aos poucos, o restante da Europa e até mesmo as Américas estão conhecendo o Aria com mais afinco. Isso graças ao bem-sucedido lançamento de Curse Of The Seas (2018), o 13º álbum de estúdio da banda formada atualmente por Mikhail Zhitniakov (vocais), Vladimir Holstinin, Serguei Popov (guitarras), Vitaly Dubinin (contrabaixo) e Maxim Udalov (bateria). Mixado por Roy Z (Bruce Dickinson, Halford, Angra, Sepultura, etc.) e masterizado por Maor Appelbaum (Halford, Sepultura, Sabaton, Dokken, etc.), Curse Of The Seas foi amplamente divulgado pelo mundo ocidental, abrindo portas que nunca foram abertas para o Aria, como, por exemplo, ser headliner nos festivais Keep It True (Alemanha) e Pyrenean Warriors Open Air (França). Para coroar esta nova e vitoriosa fase, o Aria organizou em abril um show bastante ousado e colossal em termos de estrutura. O show foi gravado e recentemente lançado em formato de DVD e de CD duplo através da gravadora M2VA, com o título Guest From The Shadow Kingdom.

Gravado no estádio do Dínamo, um dos clubes mais tradicionais de Moscou, o show contou com uma estrutura de palco de três níveis que totalizavam 9 metros de altura e que lembrava um grande navio pirata, além de um telão de 600 metros-quadrados que serviu como backdrop e que mudava seu tema a cada música tocada. Uma ponte de madeira levava o palco principal a um palco menor que imitava a proa do navio. Em vários momentos do show, o palco menor se desprendia do maior e, suspenso por correntes, levava os integrantes da banda para o outro lado do estádio. Como se não bastasse, em algumas músicas o vocalista Mikhail Zhitniakov era suspenso por cabos e levado a sobrevoar a plateia. Tudo isso sem contar os figurinos dos integrantes e as baquetas de Maxim Udalov que brilhavam no escuro.

Com uma estrutura tão grandiosa, o set-list do show também não poderia ser por menos. Além de apresentar faixas do novo álbum Curse Of The Seas, o set-list priorizou as mais épicas e longas composições da história do grupo, além de alguns hits indispensáveis e de baladas. A preferência por este tipo de composição para montar o set-list foi feita em detrimento de vários clássicos oitentistas e recentes do grupo que costumam ser tocadas em shows normais. Se você ainda não conhece o Aria, cabe lembrar aqui que a banda mantém a tradição de cantar em russo desde seus primórdios. Portanto, os títulos das músicas, bem como o do DVD, serão transcritos aqui em suas traduções oficiais em inglês.

Vladimir Holstinin (guitarras), Maxim Udalov (bateria), Mikhail Zhitniakov (vocais), Serguei Popov (guitarras) e Vitaly Dubinin (contrabaixo)

As câmeras mostram no início do DVD a banda se preparando para entrar em ação. O público presente põe o estádio do Dínamo abaixo quando eles sobem no palco. O último a passar para frente do palco é Mikhail Zhitniakov, que chega entoando os versos de Race For Glory, faixa de abertura de Curse Of The Seas. Logo em seguida o grupo toca mais uma música nova, a “blueseira” Kill The Dragon. Para tocar esta faixa, a banda toda se veste de capas cinzas e usa máscaras de gás, pois sua letra é uma crítica à poluição e aos esforços nucleares das grandes potências. Após apresentar as duas primeiras faixas, a banda troca as vestimentas anti-radiação e se veste de coletes de patches, pois é hora de voltar no tempo para tocar o clássico oitentista Hero Of Asphalt, faixa-título do terceiro álbum do Aria, lançado em 1987. A viagem à época soviética do Aria dura pouco (e acontecerá pouquíssimas vezes ao longo do show), pois a próxima música é a também nova Lucifer Era, que traz críticas aos atuais padrões de consumo e a dependência das redes sociais. A crítica é reforçada pelos telões, tanto os menores quanto o gigante, que mostram várias referências ao consumismo e às redes sociais. Apesar de a música ser nova, ela remete o ouvinte à era Hard Rock do grupo, explorada com força no segundo álbum do Aria, Whom Are You With, de 1986. O guitarrista Serguei Popov, apesar de ser oriundo do Thrash Metal (ele foi guitarrista da tradicional banda Master nos anos 80 e 90) apresenta em seu solo desta música toda sua destreza com o slide na mão esquerda.

Chega então um dos pontos altos do concerto: a execução de Curse Of The Seas, um épico progressivo de mais de 12 minutos que alterna momentos calmos, refrão marcante e partes quebradas e pesadas. Nesta hora toda a banda se veste de piratas e Zhitniakov assume o comando da embarcação cantando do palco menor, suspenso por sobre o público e comandando toda a multidão como se fosse o verdadeiro Barba Negra. É interessante notar como o jovem vocalista de 40 anos (para efeitos de comparação, o Aria completa 35 anos de existência ano que vem) que entrou no Aria em 2011 com a dura missão de substituir dois veteranos vocalistas se sente bastante a vontade como frontman do grupo. Dono de um imenso carisma e de uma forte presença de palco, Zhitniakov também possui um timbre de voz poderoso e marcante. Além disso, ele se sai bem cantando tanto as novas músicas quanto as mais antigas, gravadas originalmente pelos seus dois antecessores Valery Kipelov e Arthur Berkut. Falando em Arthur Berkut, as próximas duas músicas do show foram gravadas originalmente por ele, a “levanta-público” Kolisei e a épica Baptized With Fire, ambas de 2003. Mais uma vez Zhitniakov surpreende nas indumentárias, usando uma armadura de gladiador na primeira e um longo manto de sacerdote na segunda, trazendo uma tocha na mão que dá início ao ritual de batismo com fogo.

Mais uma nova música se segue: a pesada e progressiva Varyag, que enaltece bastante o talento dos instrumentistas. O entrosamento do guitarrista-fundador Vladimir Holstinin e do veterano Serguei Popov é tamanha que parece que ambos tocam juntos desde criança, ambos destilando solos técnicos e bases pesadas e precisas. Maxim Udalov usa uma bateria bem reduzida para os padrões do Metal, o que não o impede de tocar com bastante competência os mais variados ritmos e compassos que as músicas do Aria exigem. O baixista Vitaly Dubinin é um show a parte. Ele é um verdadeiro “Steve Harris” russo tanto na forma como ele aborda seu instrumento quanto em sua imponente presença de palco. Exímio cantor, seus vocais de apoio fornecem segurança e harmonia para as linhas principais de Zhitniakov. Após a execução de Varyag, todos os integrantes atravessam a ponte de madeira e se acomodam na proa da embarcação, sentando-se cada um em um barril. Menos Maxim Udalov, lógico, que não pode carregar seu instrumento. De repente, a proa se transforma num pequeno palco de bar para a execução das baladas Point Of No Return (2014) e So Be It, esta mais uma música nova. Enquanto as baladas são tocadas, a proa com os integrantes a bordo é suspensa por correntes e carregada até o outro lado do estádio, aproximando a banda do público que está nas arquibancadas mais distantes. Abandonado no palco principal, Maxim Udalov põe a mão sobre os olhos na tentativa de enxergar seus amigos piratas que parecem ir embora.

Mas ao fim das duas baladas a proa volta e os integrantes retornam ao palco principal. Menos Zhitniakov, que permanece na proa para cantar mais uma balada, The Calm, gravada em 2000 pelo vocalista original Valery Kipelov com participação de Udo Dirkschneider. Encerrado o “Momento Balada”, chega a parte mais sombria e densa do concerto, com a execução do épico The Hangman (2003) e da infernal Antichrist (1991). Vestido como um condenado à forca, Zhitniakov se pendura em uma cruz na parte final e speed de The Hangman em um dos momentos mais apoteóticos e arrepiantes do show. A cruz é suspensa e carregada para o meio do estádio para depois abandonar o vocalista e deixá-lo sozinho flutuando por sobre o público cantando Antichrist. Seguro por cabos presos ao teto, Zhitniakov retorna ao palco performando acrobacias “Artur-Zanetianas”. O vocalista sai e logo retorna vestido como um senhor mongol para a execução da rápida e “maideniana” Deception (1998), que vem seguida do Hard Rock de Sky Will Find You, de 2000, que deixa todos os músicos bastante a vontade e descontraídos. Esta música, assim como várias outras do set-list, exige bastante a participação do público, que é composto não somente de headbangers, mas também por muitas pessoas que parecem pertencer a um universo distinto do Heavy Metal, que vão ao show do Aria para ver aquela banda que despontou para a mídia nos anos 80 e que até hoje é sinônimo de sucesso comercial em seu país.

Orquestrações duramente soviéticas dão início a mais um clássico da banda, a faixa-título de Night Is Shorter Than Day, de 1995, que lembra os tempos áureos do Iron Maiden oitentista (Tentei me segurar ao máximo para não mencionar o nome da banda de Steve Harris neste relato, mas isso é impossível em se tratando de Aria, tendo em vista que seus primeiros álbuns renderam à banda o apelido de “Iron Maiden russo”). O show dá indícios de que está chegando ao seu final quando Vitaly Dubinin executa a clássica linha de baixo da onipresente e puro Heavy Metal Torero, única representante do debut Megalomania (1985) a ser tocada ao vivo no set-list, que abre caminho para o aguardado hit Street Of Roses, de 1987, que encerra de forma apoteótica e com forte participação do público um grandioso e ousado concerto, digno das maiores e mais adoradas bandas de Rock do planeta. A banda se despede como piratas que se saem vitoriosos depois de uma grande e trabalhosa cruzada enquanto nos PA’s toca a instrumental e assustadoramente soviética Megalomania, faixa-título do debut.

A qualidade de vídeo e áudio do DVD é impecável. Cada instrumento está bastante audível aos ouvidos, apesar de eu ter a impressão de que a guitarra de Serguei Popov está um pouco mais alta que a do patrão Vladimir Holstinin. Os cortes de vídeo são suaves e precisos, o que permite que se assista ao show de forma confortável, e exibe de forma igualitária cada um dos cinco integrantes. Quanto ao set-list, senti falta de uma música em particular, a faixa-título de Playing With Fire (1989), que se encaixaria perfeitamente na proposta do concerto que priorizou músicas épicas e longas. Mas a qualidade, o detalhismo e a ostentação com as quais foi produzido o concerto impressionam tanto que tais detalhes se tornam irrelevantes.

Em uma matéria sobre a história do Aria que este escritor escreveu há alguns anos aqui mesmo para a ROADIE METAL, está registrado que Vladimir Holstinin fundou o Aria em 1985 na União Soviética em busca da realização de um sonho: simplesmente tocar Heavy Metal, mesmo que clandestinamente na ainda casca-grossa URSS, inspirado pelos seus heróis do Black Sabbath, do Deep Purple, do Jethro Tull e do Iron Maiden, sendo que esta última seria a maior referência musical do grupo. Após mais de três décadas onde a banda quase acaba três vezes (duas por debandada em massa de vários integrantes e outra na crise da União Soviética em 1991), o Aria hoje se mostra tão poderoso quanto uma fênix e vive atualmente sua mais bem-sucedida fase, quanto musicalmente quanto comercialmente. O show registrado no DVD Guest From The Shadow Kingdom serviu para coroar esta nova fase. Agora o Aria persegue mais um objetivo: após conquistar a Rússia, eles se planejam agora para conquistar o mundo. Talento e coragem estes piratas já provaram que tem de sobra!

Guest From The Shadow Kingdom (DVD) – Aria (M2VA, 2019)

Tracklist:
01. Race For Glory
02. Kill The Dragon
03. Hero Of Asphalt
04. Lucifer Era
05. Curse Of The Seas
06. Kolisei
07. Baptized With Fire
08. Varyag
09. Point Of No Return
10. So Be It
11. The Calm
12. The Hangman
13. Antichrist
14. Deception
15. Sky Will Find You
16. Night Is Shorter Than Day
17. Torero
18. Street Of Roses

Line-up:
Mikhail Zhitniakov – vocais
Vitaly Dubinin – contrabaixo
Vladimir Holstinin – guitarras
Serguei Popov – guitarras
Maxim Udalov – bateria

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