Quantos artistas podem se orgulhar de serem percussores em um gênero ou subgênero da música? Poucos, muito poucos. Surgido como um projeto solo de Neige – e que desde 2009 conta com o baterista Winterhalter –, o Alcest é um dos raros nomes a poder se orgulhar de tal feito. Com sua mistura de Post Black Metal e Shoegaze, foi responsável direto pelo surgimento do Blackgaze, além de ter se tornado um instrumento de fuga da realidade por parte de seu idealizador, onde ele mergulha em sua espiritualidade e sonhos de infância. Sua sonoridade, altamente imersiva, e que trafega entre o agressivo e etéreo, mergulha o ouvinte em uma experiência musical única, e que acabou não só por atrair uma parcela de fãs do Metal, como também de fora desse meio.
Do início, com a demo Tristesse hivernale (01) até os dias de hoje, o Alcest foi construindo sua sonoridade, uma identidade única e que permite ao ouvinte perceber que se trata da banda já nos primeiros acordes. A cada lançamento, os elementos Black iam perdendo um pouco mais de espaço para o Post e o Shoegaze, até chegar a Shelter (14), onde eles se tornaram inexistentes. Em Kodama (16), para a surpresa de alguns, esses elementos retornaram a sonoridade do Alcest, e continuam fortes em Spiritual Instinct.
Apesar de ser uma continuação natural de Kodama, a primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato de esse ser um trabalho menos introspectivo que os 2 últimos lançamentos da banda, já que Spiritual Instinct soa levemente menos escuro e mais direto que os antecessores. Aquela dose de complexidade que estamos acostumados a escutar em um álbum do Alcest se faz fortemente presente, com camadas de sons e melodias que se sobrepõem e geram paisagens sonoras que são fortes e exuberantes, tudo isso acompanhado de vocais que mesclam cantos quase litúrgicos de Neige, com aqueles gritos desesperados do Black Metal. Não vou negar que em alguns momentos, as coisas tendem a ficar um pouco parecidas, mas isso é o tipo de coisa que não incomoda de verdade um fã da banda. Já alguém mais acostumado a sonoridades mais tradicionais e dentro de um padrão, podem vir a estranhar tal proposta.
De cara já temos um dos grandes destaques do álbum, com a belíssima “Les Jardins De Minuit”, faixa que mescla a rispidez e frieza dos riffs típicos do Black, com vocais mais etéreos, por mais que em determinado momento as vozes mais ríspidas surjam. O trabalho de bateria também se destaca. Angústia e esperança se misturam, despertando sentimentos únicos. Por falar em bateria, ela surge imponente no início de “Protection”, faixa seguinte. Enérgica, pesada e bem dinâmica, possui riffs que pendem para o Progressive Black Metal e um ótimo trabalho vocal. Tem uma atmosfera mais viajante, que vai te levar longe enquanto a escuta. “Sapphire” mantêm essa vibração mais progressiva, e possui uma queda maior para o Post Metal, com destaques principalmente para as belíssimas melodias e o refrão que te pega fácil. “L’île Des Morts” tem um instrumental simplesmente fenomenal, e com cerca 9 minutos, se mostra não só a maior canção do álbum, como a melhor. Sabe aquela mescla de sons e sensações que só o Alcest consegue despertar no ouvinte? Está aqui. “Le Miroir” é uma canção altamente imersiva, e que vai fazer você mergulhar profundamente em seu interior. A sensação de solidão aqui é inevitável. Encerrando, temos “Spiritual Instinct”, com sua pegada mais melancólica e um que de ritualístico. Aqui, tempos aquela dualidade entre alegria/tristeza, ordem/caos, horror/beleza, se tornando a escolha perfeita para finalizar o álbum.
Gravado no Drudenhaus Studio, o álbum teve mais uma vez a produção e mixagem realizadas por Benoît Roux, e a masterização por Mika Jussila. O resultado, como de praxe, é ótimo, e permite ao ouvinte usufruir com perfeição de toda a experiência que é escutar um álbum do Alcest. A capa, assim como em Kodama, foi obra de Førtifem, duo formado por Adrien Havet e Jessica Daubertes. Se por um lado, musicalmente falando, esse seja o álbum mais direto e menos introspectivo dos franceses, liricamente talvez seja o mais pessoal de todos, já que Neige não teve medo de se expor nesse sentido. O resultado é um trabalho que apesar de ter sido lançado em 2019, acaba se encaixando com perfeição nos dias atuais, já que consegue mostrar que mesmo meio a maior escuridão, ainda sim há esperança.
Faixas:
01. Les Jardins De Minuit
02. Protection
03. Sapphire
04. L’île Des Morts
05. Le Miroir
06. Spiritual Instinct
Formação:
– Neige (vocal/guitarra/baixo/teclado)
– Winterhalter (bateria)
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