O tempo de palco que uma banda possui não lhe credencia para entrar no estúdio e registrar seu trabalho sem qualquer auxílio externo. São ambientes distintos e, nesse momento, o acompanhamento de um terceiro é mais do que recomendável. É aí que entra a figura do produtor. Ele não vai apenas fazer a captação do som e devolvê-lo para a banda em forma de arquivo. Ele está lá para muitas funções: opinar, aconselhar, fazer arranjos, facilitar para que os músicos consigam obter aquilo que imaginaram para a divulgação de sua obra.
Quer um som limpo ou uma pegada mais suja? Quer ir aos limites do extremismo ou tornar sua música radiofônica? Quer a pura espontaneidade ou a perfeição de cada pequeno detalhe? O produtor será alguém em quem a banda colocou a expectativa de poder ajudá-los nesse processo. Alguns alcançaram um grau de atuação elevado a ponto de se tornarem tão míticos quanto os próprios artistas, chegando, por vezes, a serem eles o foco da informação: “Fulano irá produzir o novo disco da banda Y”.
Nessa série de matérias que agora se inicia, iremos abordar alguns dos profissionais mais reconhecidos nesse campo de atuação, separados por décadas, a partir dos anos 60, quando o conceito de álbuns começou efetivamente a tomar o lugar dos singles.
GEORGE MARTIN
Por trás dos ternos, dos sorrisos e da aparência adocicada, havia muito mais nos Beatles. Muito conflito e competição. E a tensão gerada a partir disso não poderia ser desperdiçada, como de fato não foi. George Martin compreendeu isso desde o começo.
Nascido em 1926, o produtor já tinha 36 anos de idade quando os Beatles chegaram ao seu conhecimento, mas é claro que, a essa altura, ele já possuía algum renome. O jovem inglês que, mesmo tendo se alistado e servido, não chegou a ir até o front da Segunda Guerra Mundial, começou bem cedo a trabalhar dentro da indústria musical que tanto lhe atraia. Rock’n’Roll era ainda algo inexistente em seu vocabulário. Era o tempo em que cantoras como Shirley Basse dominavam o rádio, disputando espaço com programas humorísticos na linha do The Goon Show, onde o iniciante Peter Sellers atuava, e Martin teve suas primeiras oportunidades dentro desse meio. Os Beatles só vieram lhe surgir depois de uma sucessão de negativas colacionadas pelo empresário Brian Epstein. Martin poderia ter sido mais um a reforçar o coro de “nãos”, mas, embora tenha considerado que a banda não apresentava nada demais e compreender as razões do acúmulo de negativas, ele enxergou ali algo com o que poderia lidar.
Havia energia e, mais instigante ainda, havia uma divisão no trabalho das vozes. Embora já estivesse engatilhado, o “não” transformou-se em “sim”, e George Martin iniciou, com os Beatles, uma trajetória tão longa quanto nos permite entender a relativa passagem de tempo da época.
Antes de afetar a música dos Beatles, Martin afetou os próprios Beatles, ao demonstrar insatisfação com a performance de Peter Best, fazendo com que Ringo Starr fosse chamado e o resto seria história. Formação fechada, Martin captou logo o clima de disputa que ali existia ali e não teve pudores em estimulá-la. Mesmo estando apto a lidar com o comportamento mais instintivo de Lennon, foi através de Paul que ele encontrou meios melhores de inserir suas ideias de orquestrações dentro das músicas, como o fez em “Eleanor Rigby” e “I Am The Walrus”, ou tocando o piano em “In My Life”. McCartney por vezes não acatava de imediato as sugestões de Martin, mas os resultados, tal qual o obtido no clássico “Yesterday”, findavam por convencê-lo.
Chamar Martin de “quinto Beatle” não é, de modo algum, um exagero, visto que, conforme a banda ia evoluindo e tornando-se mais experimental, a percepção de utilização do ambiente de estúdio como ferramenta criativa foi gradativamente se tornando ampliada e, afinal, o estúdio era o instrumento de Martin. Cada nova técnica germinaria uma sequência de ideias nas cabeças dos músicos. Assim foi, por exemplo, com “Tomorrow Never Knows”, tocando as fitas ao contrário. Chegou, porém, o momento em que os avanços que, até então, eram utilizados, alcançaram o nível em que foi preciso um upgrade mais profundo, sob pena de não atender a demanda criativa.
“Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band” é um disco que se mantém perene no topo das listas de melhores álbuns de todos os tempos. A transposição de limites que ele representou, requeria – e só foi possível – graças aos esforços de Martin em ampliar os recursos de captação. Como a EMI só dispunha de gravadores de quatro canais, o produtor, junto com seus técnicos, conseguiu fazer a junção de dois gravadores, ligando-os a uma mesa de mixagem, perfazendo um único equipamento com oito canais de possibilidades.
A relação de Martin com os Beatles só foi interrompida por ocasião do álbum “Let It Be”, mas o produtor colacionou um extenso rol de trabalhos bem sucedidos para além do quarteto de Liverpool, entre os quais alguns dos mais celebres foram os álbuns “Blow By Blow” e “Wired”, de Jeff Beck, e “Apocalypse”, da Mahavishnu Orchestra. Também produziu a regravação da canção “Candle In The Wind”, feita por Elton John para homenagear a memória da Princesa Diana, que obteve o topo das paradas. Dire Straits, Cheap Trick, UFO, Celine Dion, Pete Townshend e Sting são outros dos principais nomes que os quais colaborou. Uma parte de suas memórias restou registrada nos livros que escreveu em co-parceria com jornalistas: “All You Need is Ears”, de 1979, e “Summer of Love: The Making of Sgt Pepper”, sobre o aclamado álbum. Martin deixou o mundo aos 90 anos, no dia 8 de março de 2016.
ANDREW LOOG OLDHAM
Ver as antigas fotos de Loog Oldham junto com os Rolling Stones causa uma rápida confusão. Um momento em que não reconhecemos qual dos Stones é aquele. Andrew era da mesma estirpe dos integrantes da banda e, talvez por isso, tenha tido a epifania que o levou a empresariar a banda, após tê-los assistido pela primeira vez.
Sim, empresariar, pois apesar de ser creditado como produtor nos sete primeiros discos, de “The Rolling Stones” (1964) até “Between the Buttons” (1967), consta que seu conhecimento nessa área era próximo do nulo. Pelo lado do marketing, a coisa era diferente. Andrew foi o responsável por dissociar a imagem do tecladista Ian Stewart do restante do conjunto, tanto por sua aparência física mais robusta, em contraste com a magreza dos outros, quanto pelo fato de que uma banda com seis integrantes iria parecer demais.
Outra de suas estratégias foi a de promover a aura de perigo ao redor dos Stones, ao contrário do que Brian Epstein fez com os Beatles. Apesar dessas estratégias, Oldham também fomentou incentivos ao lado musical, encorajando Jagger e Richards a criarem suas próprias músicas.
Quando alguns integrantes da banda foram presos por posse de drogas, Oldham fugiu para a América e, por lá, produziu discos de artistas como Donovan, dedicando-se também a lançar uma série de livros de memórias e co-escrever uma biografia do Abba. Hoje, ele vive em Bogotá, na Colombia, e produz artistas locais, mas seu nome permanece referenciado com um dos papas da contracultura.
PHIL SPECTOR
São pontuais os casos em que um produtor é citado como influência, não só para outros produtores, mas para artistas diversos. Brian Eno, Tony Visconti, Jesus And Mary Chain, Velvet Underground… Esses e tantos outros mencionam Phil Spector como referência em muitas de suas obras.
Nascido um dia depois do Natal de 1939, em New York, Phil iniciou sua carreira como integrante da banda Teddy Bears, mas não demorou muito tempo para começar a se inteirar do funcionamento dos estúdios e assumir suas primeiras produções. Embora tenha produzido diversos álbuns, a sua visão sempre foi mais voltada para os singles e, nesse formato, a sua lista de sucessos é enorme, emplacando hits sucessivamente e entregando, para a história da música, algumas de suas mais emblemáticas canções, como “Be My Baby” e “Baby I Love You”, das Ronnetes, “You’ve Lost That Lovin’ Feelin” e “Unchained Melody”, dos Righteous Brothers, e “River Deep – Mountain High”, de Ike and Tina Turner, sendo que essa última ele considerava um de seus melhores trabalhos.
Não obstante o completo controle que exercia sobre todos os passos dos trabalhos que realizava, a sua principal marca foi o desenvolvimento da técnica denominada “Wall of Sound”, que fornecia um som grandioso para as canções e favorecia a sua execução em rádios AM e jukeboxs. O “Wall of Sound” consistia na utilização de diversos instrumentos atuando juntos, misturando, por exemplo, guitarras elétricas com acústicas, acrescentando orquestrações e dobrando, ou triplicando, a captação do som dos instrumentos, criando um som em camadas uníssonas, que o próprio Spector definia como sendo “a abordagem wagneriana para rock&roll: pequenas sinfonias para os jovens”.
Mas isso não significa que esse modo de atuar tenha sido recebido sem restrições. O trabalho feito para a gravação do disco “Death of a Ladies’ Man”, de Leonard Cohen, causou insatisfação para o compositor e para uma significativa parcela de seus fãs, pela inserção desses elementos de grandiosidade na música de Cohen, mais reconhecida por ser de condução suave e acústica. Spector se trancou no estúdio e não permitiu que Cohen entrasse para opinar sobre o seu próprio disco que, ao final, acabou rotulando como grotesco.
Se essa parceria não gerou frutos satisfatórios para as partes, outras acabaram perdurando por mais tempo, como a que foi construída junto a John Lennon e George Harrison. Os dois Beatles entregaram para Spector os takes das sessões de gravação do que viria a ser o álbum “Let It Be”, a fim de que o produtor as transformasse em algo que considerassem aproveitável. O resultado pode ter desagradado Paul McCartney em parte, mas para Lennon e Harrison foi o primeiro passo de um relacionamento que rendeu alguns discos e canções como “Instant Karma”, “Happy Xmas (War Is Over)” e “My Sweet Lord”.
Nesse período, porém, já era possível perceber que Spector tinha um comportamento excêntrico, para dizer o mínimo. Em uma das sessões da gravação do disco “Rock´n´Roll”, de John Lennon, durante o permanente estado de orgia regada a álcool e drogas dentro do estúdio, o produtor disparou uma arma dentro do ambiente, causando problemas de audição no músico. Fatos dessa natureza também foram registrados quando Spector trabalho com os Ramones, no disco “End Of The Century”, fazendo o quarteto passar oito horas seguidas tocando o mesmo acorde, ou, em outra ocasião, apontar uma arma para Dee Dee Ramone, quando esse tentou se retirar de uma sessão, segundo rumores.
O golpe fatal em sua carreira, porém, veio com a condenação por assassinato, pela qual cumpre pena desde 2009. A morte da atriz Lana Clarckson, em sua residência, entra em consonância com as acusações de abusos relatadas por suas ex-esposas. Aos 77 anos, Spector passa por problemas de saúde dentro da prisão e, segundo seu advogado, não está conseguindo sequer falar, devido a presença de alguns pólipos em sua garganta, além de outras condições. Presume-se que terá cerca de 84 anos quando a sua pena estiver cumprida. A história do julgamento virou filme em 2013, na produção “Phil Spector”, da HBO, dirigido por David Mamet e com Al Pacino no papel principal.