O pain of salvation é um dos poucos grupos que faz de sua musica uma verdadeira aula, tanto instrumental quanto teórica, e hoje vou falar da obra máster “BE”.
O álbum foi arquitetado durante oito anos por Daniel Gildenlow, foi uma longa jornada de pesquisas e de elaboração artística. O próprio Daniel no encarte do DVD “Be live” menciona como foi em parte essa jornada conceitual:
“… Eu (Daniel) tinha dois conceitos paralelos que girava em torno quando comecei a colocar esse conceito em ordem no começo do verão de 2003 (nosso inverno folks). Um era a idéia de que se Deus já existiu ele talvez já foi tão perdido e tão curioso como nós somos – criando o mundo como uma imagem dele/dela apenas para simular condições que talvez digam a ele/ela sua origem. A história era uma história circular onde o homem cria uma sonda inteligente á sua própria imagem para descobrir a origem e respostas para a vida. Ela acaba tornando-se um novo Deus, criando o mundo tudo de novo, argumentando que toda criação vem de um impulso de se entender, e tempo é apenas um lugar onde nós nos “movemos” para sermos capazes de perceber mudanças. É simplesmente como nossos receptores trabalham, como nossos olhos interpretam ondas de energia em cores. Essa é nossa maneira especifica de ver coisas.
O outro conceito derivou de uma sensação que eu tive quando eu estudava história cultural em 1996. Nós estávamos discutindo mitos e contos da criação como uma forma de entender o desenvolvimento da arte em diferentes civilizações. Tendo esses mitos impressos diante mim, de repente vi algumas evidencias de um padrão profundo. Eu senti essa sensação descer pelas minhas costas enquanto eu dizia para mim mesmo “Hey, algo realmente aconteceu aqui! Essas tentativas de nos contar algo têm tentado sobreviver por centenas, ou talvez milhares de anos, para nos contar algo. Mas o uso de linguagem contextual e definições nos iludem!” Eu não estou falando daquele monte de velhas de similaridades, eu estou falando de padrões que parecem ser totalmente diferentes e acontecem superficialmente, mas quando você tira a linguagem, semântica e imagina as situações como algo mais abstrato, então os valores todos começam a se ordenarem. Eu comecei a jogar com duas diferentes possíveis soluções para isso, (veja, o bom da ficção como discussão para idéias cientificas ou filosóficas, é que ela permite que você faça aquele salto lógico maior. Assim você pode muito eficientemente deixar de lado ou ignorar aqueles tendenciosos e normalmente muito dominantes conjuntos de sistemas de crença e tendências que permeiam sua especifica era contemporânea e contexto social).
O disco faz uma analogia reconstruindo o mito de Deus sob uma nova faceta, usando como base em sua grande parte nossa ciência atual. O disco possui 15 faixas que se entrelaçam e trás seus nomes em latim porem com alguns “trocadilhos”.
O álbum é dividido em 5 blocos:
- “BE” (CHINASSIAH)
- Machinassiah – Of Gods & Slaves
- Machinageddon(Nemo Idoneus Aderat Qui Responderet)
- Machinauticus(Of the Ones With no Hopes)
- Deus nova mobile … and a God is Born
BE (Chinassiah)
Animae Partus
A primeira “canção” gira em torno do discurso de Deus logo ao surgir, nela podemos ouvir os batimentos cardíacos e o poético “sopro divino”, que é por vez a origem do “ser” (Be), e da alma (Animae). O ser recém “nascido” diz a frase “EU SOU” demonstrando ter ciência de si, porem sem conhecer sua origem, apenas que advém do silêncio e da escuridão, a entidade tenta por vez entender a si mesmo, então se denomina Deus e vai à procura de respostas sobre si mesmo. Diferente do Deus da bíblia que sabe de tudo, o Deus do álbum procura através de sua fome por conhecimento saber de sua própria origem, porem assim como o Deus bíblico Animae fragmenta-se e cria seres à sua imagem e semelhança e promete passar a eternidade tentando saber quem é .
Vale lembrar que na musica as frases são provindas de três vozes (tanto masculina quanto femininas), porem sendo a mesma pessoa, o mesmo Deus no caso, uma ótima analogia a divina trindade (Deus pai, Deus filho, Deus Espírito Santo, mas ainda um único Deus).
Deus Nova
O nome da musica faz uma alusão a não existência de um sexo no Deus, visto que “DEUS” é masculino e “Nova” feminino, se fossemos seguir corretamente a lei ortográfica seria:
DEUS NOVUS (masculino) ou DEA NOVA( feminino)
A escolha do nome é intencional para representar essa não existência de sexo no Deus recentemente criado.
A musica é carregada e descreve o crescimento populacional da raça, acompanhe a letra:
10.000 a.C. — 1 milhão de pessoas / 9.500 a.C. — 2 milhões de pessoas / 9.000 a.C. — 3 milhões de pessoas / 8.500 a.C. — 4 milhões de pessoas / 8.000 a 5.000 a.C. — 5 milhões de pessoas / 4.500 a.C. — 6 milhões de pessoas / 4.000 a.C. — 7 milhões de pessoas / 3.500 a.C. — 10 milhões de pessoas / 3.000 a.C. — 14 milhões de pessoas / 2.500 a.C. — 20 milhões de pessoas / 2.000 a.C. — 27 milhões de pessoas / 1.500 a.C. — 38 milhões de pessoas / 1.000 a.C. — 50 milhões de pessoas / 500 a.C. — 100 milhões de pessoas / Ano 1 d.C. — 170 milhões de pessoas / 500 d.C. — 190 milhões de pessoas / 1.000 d.C. — 254 milhões de pessoas / 1.500 d.C. — 425 milhões de pessoas / Ano 2.000 d.C. — 6.080 bilhões de pessoas
Depois da contagem, Animae volta e explica o que acabara de fazer:
“eu criei o mundo para ser a imagem de mim mesmo, da minha mente”
“eu tomei para fora para formar uma nova raça (…) e agora eu sou muitos, tantos…
Com a humanidade criada a sua imagem e semelhança Animae espera aprender algo, ali fragmentado em bilhões de pessoas ele espera saber quem é.
Imago (Homines Partus)
Nesta faixa “iniciasse” o ser humano e a humanidade, a musica carrega em seu tema ritmos tribais que nos remete aos homens das cavernas. O titulo vem do latim “à imagem de”, e representa o reflexo de Animae, este que divide sua mente em minúsculas “partes”, restos do primeiro pensamento que podem agora interagir estando separadas.
Bem diferente da bíblia cristã, o homem é criado primeiro que mares e animais, somente após a criação humana que se pode assistir a criação das demais “coisas”.
Essa representação é extraordinária na musica, onde as estações do ano são destiladas junto ao raciocínio humano, este que via tudo ser formado e experimentado:
“Primavera trouxe o despertar, trouxe inocência e alegria
Primavera trouxe fascínio e desejo de se fixar
Verão trouxe inquietude e curiosidade
Verão trouxe anseio pelas coisas que não podemos ser”
Logo que tudo ia sendo criado o homem desejava ali “sentir” e estar junto a aquilo tudo:
“Leve-me à floresta, leve-me às árvores
Leve-me a qualquer lugar, contanto que você me leve
Leve-me ao oceano, leve-me ao mar
Leve-me ao Respirar e SER”
Tudo era novo e a fome de conhecimento tão latente em Animae também transborda no homem:
“Ensine-me sobre a floresta, ensine-me sobre as árvores
Ensine-me qualquer coisa, contanto que você me ensine algo
Ensine-me sobre o oceano, ensine-me sobre o mar
Ensine-me sobre o Respirar e SER”
Diferente de Animae o homem parece saber entre aspas de onde veio:
“Vejam-me! Eu sou a criação
Ouçam-me! Sou o amor que veio de Animae”
Em minha opinião Imago é a melhor e mais expressiva musica do álbum.
Pluvius Aestivus
A faixa instrumental representa o começo da vida e à fertilização dos campos causada pela chuva, dado que o nome da faixa vem do latim “chuva de verão”. É incrível como a musica nos transporta para pensamentos de campos sendo germinados e a vida “brotando”.
Machinassiah Of God & Slaves
Lilium Cruentus (Deus Nova)
Lilium Cruentus é forte e carregada pelo fantasma da morte junto a incapacidade humana de lutar contra ela, o titulo que do latim significa “Lírio manchado de sangue”, expressa perfeitamente essa idéia e comunga junto as questões existências tão discutidas, como tudo se originou? De onde tudo veio? Para onde se vai?
“A vida parece ser muito pequena quando a morte cobra seu pedágio”
O conceito traz o homem moderno em meio ao seu cotidiano exprimindo duvidas existenciais.
Nauticus ( Drifting)
Imerso pelo mar de duvida Nauticus que em latim quer dizer “navegante” ou “marinheiro”, trás os humanos procurando em Deus a resposta para suas duvidas colossais, é mais fácil se apegar e achar uma resposta em divindades quando tudo parece perdido.
A musica segue com vozes graves que lembram cantos gregorianos, demonstram facetas de preces e suplicas porem sem obter respostas. O homem então se apega a bens materiais e ao dinheiro.
Dea Pecuniae
Dividido em três partes Dea Pecuniae que significa “deusa do dinheiro”, traz um conceito bem humano e tem correntes forjadas com ganância, dinheiro e mulheres fúteis, muito bem representadas através dos “personagens” Sr. Dinheiro, Srta. Mediocridade e a Deusa do Dinheiro.
1-Mr. Money
A musica no estilo “Broadway”, traz estampado todos os prazeres momentâneos. Festas e entretenimentos tomam conta do novo ser, este que é observado sem pautas por Animae.
Essa parte primeira da canção traz o Sr. Dinheiro entre um dialogo com a Srta. Mediocridade e se vangloria do que possui:
“Eu poderia ter comprado um país de terceiro mundo com as riquezas que gastei”
Após um lindo solo pra lá de Blues temos a “deusa do dinheiro” recitando o que tem a oferecer:
“Se você procura realização um Reino e uma Coroa (…) Te darei os carros sexy`s e um gosto de divindade, Um lampejo das Estrelas, Imortalidade”…
2-Permanere
Após festas e “diversões” regadas a “ouro”, Sr. Dinheiro sente um vazio depressivo, mesmo podendo comprar tudo, algo lhe falta, e o Sr. Dinheiro sente se derrotado, porem essa palavra praticamente não existe em seu vocabulário:
“Mas quando tudo está calado e as luzes dos bares se apagam, eu preciso de consolo porque em algum lugar aqui no fundo ascendem sentimentos de derrota, E eu odeio perder!”
3- I raise my glass
Nessa terceira parte da musica vem os brindes entorpecidos do Sr. Dinheiro, mais suas vulgares revelações:
…Podem apostar que é solitário no topo velhos amigo e hoje eu contarei a vocês idiotas o porquê! (…) Eles afirmam que eu sou pago por minha grande Responsabilidade, mas você sabe…
Que isso é só uma desculpa esfarrapada para minha egocentricidade
Eles dizem que somos iguais, eu e vocês e eu realmente concordo
Veja:
Assim como eu, vocês vivem para mim, até o dia de suas mortes, Por isso eu brindo a todos vocês! (…) Ergo a minha taça para aqueles entre vocês que dão suas fatias do bolo de graça para que eu as jogue na cara da democracia…
Vale lembrar que nesse ponto o homem faz do dinheiro o seu Deus.
Machinageddon (Nemo Idoneus Aderat Qui Responderet)
Vocari Dei (Sordes Aetas — Mess Age)
Com lindos harmônicos de guitarra, Vocari Dei e super criativa e interessante, retrata as suplicas humana a Deus.
Durante a gravação do álbum a banda disponibilizou um numero de secretaria eletrônica para que fãs deixassem mensagem a Deus, Gildenlow na época disse que podia Ser qualquer coisa desde que fosse de coração. O resultado foi incrível, quanto que algumas pessoas agradeciam a Deus de alguma forma, outras o culpava por fome, guerra e catástrofe, é muito emocionante, pois são pessoas reais desabafando.
Uma curiosidade sobre essa faixa e a participação do baterista Mike Portnoy ( ex-Dream Theater), que também gravou uma mensagem agradecendo por sua sobriedade e resistência, Mike durante um tempo foi membro dos alcoólicos anônimos ( A.A)
A mensagem de Mike Portnoy pode ser ouvida apenas nos extras do DVD “BE” live.
Essa musica representa a escravidão de Animae em relação aos humanos, visto que é depositado nele toda a culpa por enfermidades, crises e erros, todas as guerras travadas pela humanidade são em seu nome.
Diffidentia (Breaching the Core)
Tantas duvidas e cobiças acabam por fazer a humanidade se rebelar contra Animae, se transformando em deuses e deixando de ser fragmento da Mente do Ser para tornar-se “indivíduo”, com o “circulo” sendo quebrado Animae se enfraquece.
A tradução do titulo diz muito sobre o decorrer da canção, “Desconfiança” (Penetrando no âmago).
Animae:
(…) Meus estilhaços viraram estilhaços deles mesmos, pedaços de pedaços, impossíveis de reunir, passando suas vidas na busca de um contexto do qual sempre fizeram parte…
Nihil morari (homines fabula finis)
O titulo dessa é bem sugestivo, “Nada restará” (fim da fábula humana), e conta de forma bela a falha de Animae e de Imago, começa o fim do “ciclo”.
A Terra, antes fértil e intacta é deteriorada em meio à discussão pela sobrevivência, a humanidade que conquista a lua e planeja colonizar marte destrói a terra em nome do dinheiro.
No fim da musica volta o tema musica de “Deus nova” e acompanha a seguinte letra:
“The year 2,010 AD: 6,823 Million people
2,020 AD: 7,518 Million people
2,030 AD: 8,140 Million people
2,040 AD: 8,668 Million people
2,050 AD: 9,104 Million people”
Machinauticus (Of the Ones With no Hopes)
Latericius valete
Do latim “Feito de tijolos fortes”, a musica instrumental é carregada e climática, simboliza o passar de tempo, apenas uma frase é dita:
2,060 AD: 1.2 Million people…
E representa a diminuição populacional para 1,2 milhão de pessoas e que, comparado á data da ultima faixa, essa redução ocorreu em uma década.
Omni
O titulo em si é muito interessante, pois Omni é a palavra que dá origem ás palavras “onipresença”, “onipotência”.
A ultima gota de esperança restante para descobrir as respostas sobre a vida e o universo, é construir a mais avançada sonda, esta que ganha o nome de “Nauticus”. Na musica pode se ouvir as noticias angustiantes de doenças, mortes e catástrofes que assolam a terra.
A sonda Nauticus é a maior criação universal e navega no espaço, seu objetivo firmado é encontrar resposta para poder salvar o planeta terra dele mesmo, por fim a Humanidade se degrada muito e Nauticus faz sua busca.
Iter Impius (Martigena, son of Mars) (Obitus Diutinus)
Nesta musica o Sr, dinheiro renasce através de uma hibernação, e dessa vez nosso querido Mr. Money esta imortal e descobre que realmente ele é dono de TUDO, porem não tem nada pra ele tomar posse, não há nada pra ser dono, o mundo esta em ruínas e foi tomado por algumas maquinas deixada pela humanidade.
Agora ele é o rei do mundo, porem governava RUINAS.
A musica se porta como uma das melhores do disco, com muito feeling e pegada, Daniel despeja vocais sensacionais, uma obra de arte.
Martius/Nauticus II
A sonda Nauticus adquire consciência, ela detém todo o conhecimento Humano alem do conhecimento sobre todas as “coisas”.
Eu estou na fronteira, eu vejo tudo. Agora eu sou Nauticus e muito mais, eu sou tudo
Estou na fronteira – exatamente na fronteira, uma eternidade num piscar de olhos
Neste lugar chamado tempo
Eu sou todas as coisas
Eu sou todo os lugares
Eu sou todos
Ômni
“SER”
A musica é muito bonita e tem um ar cientifico, em certo momento ela volta com as batidas tribal de Imago.
Deus nova mobile … and a God is Born
Animae partus II
Agora temos o desfecho, o final do ciclo, o “nascimento da alma”, o surgimento de um novo Deus personificado como “I AM”.
A historia se repete de forma diferente, porem igualmente em termos filosóficos. Podemos chamar essa obra de mitológica, porem “Be” fala da Humanidade e de todas as facetas desfiguradas da mesma, cobiça, consumismo, materialismo, futilidades, temas religiosos e espirituais, “Be” traz em seu decorrer pensamentos por vezes deixado de lado devido sua complexidade. Os problema comuns de nossa sociedade são muito bem expressados através do “Sr. Dinheiro” e a critica vai alem de simples “xingamentos”, e sim exalam conscientemente opiniões e posicionamentos por muitos não entendido.
Fontes:
Alem é claro das letras do álbum, usei um excelente TCC publicado por Jaqueline Pricila dos Reins Franz, que tinha o álbum como base.