Você provavelmente já ouviu falar de como a indústria musical era diferente há 10, 20, 30 anos ou mais. Sem a facilitação de acesso à música que a internet proporciona, o público ficava a mercê principalmente do que era oferecido pela mídia, quase inviabilizando uma garimpagem própria em busca daquilo que de fato se enquadra no seu gosto. A consequência disso eram estilos dominantes representados por bandas que os definiam, e um conjunto de sub-bandas que procuravam tocar aquilo que estava na moda, caso contrário, corriam sério risco de não se sustentar por muito tempo. Claro que a morfologia da indústria musical se deve às exceções à essa regra. Ainda assim, era difícil ser um ponto fora da curva.
Essa subordinação ao mainstream, bem como a extrema dificuldade para fazer música de antigamente – englobando composição, gravação de qualidade, produtor gabaritado e um selo expressivo para lançá-las – levava muitas bandas perecerem. Felizmente, hoje o cenário é um tanto diferente – apesar do mainstream ainda estar aí -, já que é possível gravar com qualidade decente no quarto de casa e lançar as músicas na web para quem queira ouvi-las.
Há bandas antigas que estão aproveitando a maior facilitação do mundo contemporâneo para voltarem às atividades e lançarem novos álbuns. Mas poucas têm uma história tão incrível e batalhadora quanto o Intrinsic com seu álbum “Nails”, que segue a linha de um consistente Heavy/Thrash Metal, bem do tipo não-genérico.
Natural de San Luis Obispo, no Estado da Califórnia, o Intrinsic iniciou suas atividades em 1984 e, no período até 1990, lançou dois discos: o homônimo, de 1987, e o EP “Distortion of Perspective”, de 1990. A essa altura, a banda estava em processo de adaptação de nova formação, já que dois membros haviam deixado seus postos: o guitarrista e fundador Ron Crawford, e o vocalista David Wayne (ex-Metal Church e Reverend), após divergências ideológicas. Foi então que o trio restante, composto por Michael Mellinger (guitarra), Joel Stern (baixo) e Christopher Binns (bateria) passaram a se arriscar a escrever novas canções pela primeira vez como um trio, o que era incomum, pois Crawford era importante peça criativa. Enquanto novas composições surgiam devagar, conseguiram contratar o vocalista Lee Dehmer Jr. (na época no Mr. Shade), mas sua residência em Phoenix, no Arizona, além dos trabalhos com sua banda, dificultavam maiores proximidades. Ele apenas voava para a Califórnia para realizar alguns shows, e então retornava para Phoenix.
Passado algum tempo, Lee Dehmer anunciou ao trio californiano que o Mr. Shade estaria encerrando suas atividades, e por isso estava interessado em se mudar para a Califórnia e se inteirar mais com o Intrinsic. Percebendo a falta de um segundo guitarrista, Dehmer levou junto seu amigo Garrett Craddock, também remanescente do Mr. Shade, e dessa forma o grupo ficou completo novamente como um quinteto.
Um fim de semana de agitação sucedeu a chegada da dupla do Arizona, já que os caras precisavam saber se Garrett Craddock combinaria com a banda em todos os sentidos: no humor, na criatividade, na cerveja. Combinou. Era hora de integrá-lo de vez.
De volta aos ensaios em seu próprio estúdio – que carinhosamente chamavam de “The Stude” -, os novos membros muito acrescentaram às composições que já estavam em andamento, deixando a banda realmente otimista acerca do que estavam fazendo. O processo perdurou até o segundo semestre de 1991, conjuntamente com diversos shows pela região. No mesmo ano, após um dos shows, encontraram o produtor Ed Sandor (que trabalha com a banda desde a primeira demo, em 1985), e decidiram apresentá-lo ao novo material escrito. Impressionado com as performances, Sandor afirmou que era necessário gravá-lo e lançá-lo imediatamente.
As gravações começaram em outubro com bateria e baixo e se estenderam por várias semanas, que foram acrescidas por mais cinco meses de produção. Nos primeiros meses de 1992, tudo estava pronto. Tinham financiado seu próprio álbum, pagado seu próprio produtor… tudo o que precisavam, portanto, era de um selo com quem assinar contrato e, enfim, lançar “Nails” no mercado musical.
Aí que estava o problema… eram os anos 90. A indústria musical estava em processo de mudança. O Grunge começava a substituir espaço antes dominado pelo Hard Rock e Heavy Metal, e, mesmo no Metal, o caminho do sucesso comercial era desbravado por Metallica e Pantera. Se sua banda soasse diferente daquilo, estaria fadada ao fracasso. Eram tempos de decepção para muitas bandas, levando diversas delas a travestirem sua sonoridade em direção ao Grunge, em uma desesperada tentativa de sobrevivência. Warrant e Wildside são apenas alguns exemplos.
“Nails” era oferecido para gravadora após gravadora. Respostas negativas vinham umas atrás das outras. Sem parar. Foi um verdadeiro balde de água fria em uma banda empolgada, inspirada e satisfeita com o nível da sonoridade alcançada em seu álbum, que tinha alcançado ótimo patamar de reconhecimento com seus dois primeiros trabalhos. Eventualmente, mesmo que desanimados, os caras seguiram em frente. Chegaram a gravar uma demo em 1993 que chamou a atenção do selo japonês Teichiku Records, permitindo o lançamento do excelente álbum “Closure” em 1996, que também recebeu uma versão europeia com uma capa diferente através da Rokarola Records. Apesar do grandioso e agressivo trabalho nesse segundo álbum de estúdio lançado (porém terceiro composto), o conjunto decidiu mesmo encerrar suas atividades logo em seguida.
Exceto por shows de reunião em 2005 e 2007, o Intrinsic passou quase 20 anos em total silêncio, até que seus integrantes voltaram a ter um contato mais acalorado em 2014 e aproveitaram para escrever uma ou outra canção. Esse tempo todo foi mais que suficiente para que muita coisa mudasse: cabelos foram cortados, trabalhos já eram outros, mudaram de cidade… a internet é que possibilitou o contato mais próximo, mesmo que pra composição.
Com a chama acesa novamente, decidiram reativar o há tanto tempo extinto Intrinsic. Criaram uma página no Facebook e, a partir dela, tiveram contato com um fã austríaco chamado Charly Kogler. Colecionador, o rapaz ficou louco quando soube de um álbum nunca lançado antes e pronto há tanto tempo. Ele tratou então de recomendar algumas gravadoras que focavam no lançamento de discos antigos que não puderam ter seus espaço na época. Uma delas era a Divebomb Records, com quem assinaram imediatamente.
Era hora de recuperarem as antigas gravações. Ed Sandor, produtor de longa data da banda, ainda tinha as fitas máster de mixagem e multi-canais guardadas mesmo após todos esses anos. A esperança era de masterizar as canções a partir das fitas máster de mixagem originais, mas elas estavam bastante deterioradas, cheias de cores estranhas. Fora que a cola que grudava as fitas estava em péssimo estado. Ao ouvi-las, Ed e Michael Mellinger se entristeceram, pois o som era cortado, ficava estranho, não reproduzia… e agora?
Agora era mixar do zero. Mas havia um problema: precisavam de uma mesa de gravação Tascam de 16 canais. Muito antiga e análoga, é raro encontrá-la em tempos modernos. Por sorte, o destino se encarregou de prestar auxílio aos californianos quando Ed Sandor viajou para Nashville a negócios e para assistir um concerto de seu amigo Neal Morse. O cara da mesa de som no show era Rich Mouser, respeitado produtor e engenheiro de som. Em uma ocasional conversa entre os dois produtores após o show, Ed acabou mencionando por acaso que estava procurando uma mesa Tascam de 16 canais e, em resposta, Rich afirmou que tinha uma em seu estúdio em Los Angeles.
A fantástica notícia foi repassada à banda, que logo agendou sua visita ao The Mouse House Studio para o fim de dezembro de 2014, a fim de transferir as velhas fitas análogas para o formato digital. Isso era necessário pois a cola que une as fitas se degrada após 10 ou 15 anos, e o óxido literalmente pula para fora das fitas quando elas são tocadas. Pode parecer estranho à primeira ouvida, mas a solução para isso é, bizarramente, cozinhar as fitas em um forno microondas! Pois é.
Colocaram as preciosas fitas dentro de um forno de microondas por alguns minutos, suficientes para reativar a cola. Após retirar do microondas, a transferência para o formato digital precisa ser feito imediatamente, antes que a cola perca suas propriedades novamente. É um processo delicado e dramático, já que fitas podem ser cozidas apenas algumas poucas vezes antes de serem totalmente inutilizadas. Muita adrenalina correu nas veias dos músicos e produtores, criando alta expectativa. A grande notícia é que o processo de transferência foi um sucesso e foi possível mixar tudo do zero, adaptando tecnologia análoga à digital e retirando o máximo de potencial das gravações.
Mas tinha mais um problema: a banda não tinha dinheiro para pagar todo esse processo, até porque isso não estava nos planos. Abriram então uma campanha de crowfunding na internet que surpreendentemente bateu sua cota em apenas três dias. O dinheiro possibilitou os devidos pagamentos e um álbum de produção moderna, pesada, que milagrosa e metodicamente unifica tecnologias análoga e digital. Nem parece que tudo aquilo estava pronto há 18 anos. Talvez “Nails” fosse mesmo um álbum à frente de sua época e ele estava apenas aguardando pelo apropriado momento de ser lançado.
O lançamento aconteceu mundialmente no dia 21 de agosto de 2015, através da Divebomb Records, em formato digipack. Um grande encarte vem inclusa, onde, além de letras e ficha técnica, conta toda essa emocionante história e como foi difícil para que tudo desse certo.
Com isso, fica uma lição: nunca desista. Lute até o último segundo, até que definitivamente todas as probabilidades sejam esgotadas. No fim, tudo dará certo se esse for o melhor para você e sua banda, e sem dúvidas será recompensador.
Lista de faixas:
01 – State of The Union (04:36)
02 – Fight No More (06:38)
03 – Die Trying (03:47)
04 – On Gossamer Wings (07:41)
05 – Pillar of Fire (05:10)
06 – Mourn For Her (07:12)
07 – The Vicious Circle (04:50)
08 – Denial (07:30)
09 – Yikes! (04:11)
10 – Inner Sanctum (05:42)
11 – Dazed and Confused (Led Zeppelin Cover) (05:05)
12 – Too Late But Not Forgotten (06:00)
13 – Cannabis Sativa (Bonus Track) (04:24)
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O Intrinsic é composto atualmente por:
Lee Dehmer Jr. (vocal);
Michael Mellinger (guitarra);
Garrett Braddock (guitarra);
Mike McLaughlin (baixo);
Christopher Binns (bateria).