Girls on The Front: Susane Hécate fala sobre sua carreira, mulheres no metal, cena underground e mais

GIRLS ON THE FRONT é um quadro criado por 4 redatoras para falar sobre mulheres e para encorajar outras a continuarem o seu objetivo na música e, para isso, contaremos a vida e carreira de mulheres no metal brasileiro e internacional. Nessa edição, conheceremos mais sobre a Susane Hécate, vocalista e tecladista da Miasthenia.

Ela concedeu uma entrevista exclusiva para a Roadie Metal em que fala sobre seu início na música, suas referências, sua escolha pelo teclado, mulheres na cena do metal e mais.

Conta pra gente um pouco da sua história com a música. Quando você decidiu montar uma banda?

Susane Hécate: Comecei tocando piano aos 11 anos de idade, por influência do meu pai. A partir dos 16 nos eu tive vontade de tocar violão e contra-baixo, mas fui aprendendo sozinha a partir daquelas revistas com cifras de violão que se comprava nas bancas no início dos anos 90. Fui aprendendo a tocar tirando músicas do Metallica, Samael e Kreator. Minha primeira banda veio em 1993, quando fui convidada para tocar baixo em banda Grind Core chamada Afonia. É dessa banda que surge o Miasthenia em 1994, quando eu e o baterista Mictlantecutli nos unimos para montar uma banda de Death Black Metal com letras em português e temática pagã.

No começo, você ficou um pouco relutante em assumir os teclados. Podemos dizer que agora ele é um super poder?

Susane Hécate: Sim. No começo do Miasthenia eu fui guitarrista e back vocals, gravei a demo-reh “Para o encanto do Sabbat” em 1995. Já na demo-oficial “Faun” (1996) eu gravei os baixos, teclados e back vocals, enquanto Vlad gravou as guitarras e vocal. Depois disso foi muito difícil arrumar um tecladista para tocar as músicas, e sem os teclados os sons não eram os mesmos. Mictlantecutli e Vlad me estimularam a tocar os teclados, mas a princípio eu fui relutante por preconceito também, já que sendo mulher e ainda atuando como tecladista, um instrumento que na época não era tão usual no metal extremo, eu me sentia meio que coadjuvante. Mas fui me conscientizando de que tinha que romper esse preconceito idiota e mostrar também o potencial do teclado na banda. Algumas bandas dos anos 90 também me estimularam a investir no teclado, como Samael, Gehenna, Amorphis, Ancient, Septic Flesh, Master’s Hammer e outras. O teclado se tornou uma característica marcante da sonoridade do Miasthenia, nos ajudou a criar o nosso próprio Black Metal com um toque mais épico e orquestral. Nós gostamos disso, e dai comecei também a compor as músicas a partir do teclado. O álbum XVI (2000) é o início desse processo quando então assumi inteiramente os vocais e passei a me dedicar mais ao teclado.

Quais as características mais marcantes sobre o seu trabalho?

Susane Hécate: Acho que uma junção das letras em português, que escrevo para o Miasthenia, baseadas em estudos históricos e mitológicos sobre temas de paganismo pré-colombiano e resistência indígena ao colonialismo-cristão, com a sonoridade épica e mais envolvente que os teclados trazem para a sonoridade do Miasthenia. Acho que minha marca é essa perspectiva histórica, épica e agressiva dos vocais que se traduz nas músicas do Miasthenia. Eu estou sempre em busca de temas do passado pré-colombiano e colonial da América para expressar sentimentos do presente, especialmente, minha crítica e indignação com a lógica colonialista e fundamentalista cristã que estruturou historicamente essa sociedade racista e sexista que tenta apagar e oprimir toda a diversidade de pensamentos, valores e identidades que escapam dessa lógica aprisionadora do humano.

Qual artista feminina te inspirou e/ou inspira?

Susane Hécate: Quando me interessei por música, ainda menina, a cantora Cindy Lauper foi minha primeira inspiração, eu gostava muito de sua postura rebelde, muito mais da atitude, embora não me inspirasse musicalmente. No começo da minha carreira no Miasthenia, em 1994, as mulheres em bandas de metal extremo ainda eram raridade, especialmente como vocalistas de Black Metal. Me lembro da baixista Jo Bench do Bolt Thrower, mas minha grande inspiração era mesmo Cliff Burton. Brasília, desde o final dos anos 80, tem uma tradição de bandas femininas de Metal que se destacaram no cenário nacional, dentre elas as bandas Valhalla, Volkana e Flammea. A Valhalla era do meu bairro e eu ficava empolgada quando elas passavam em frente ao meu prédio com aquele visual Death Metal, carregando equipamentos para ensaio. A Valhala foi a primeira banda feminina mais pesada, poderosa e de qualidade que vi em um show, e isso foi muito inspirador. Hoje em dia me inspiro também em algumas mulheres mais novas como Mayara Puertas e as meninas do Estamira, já as mulheres que estão a bem mais tempo no metal me dão ainda mais motivação por mostrar maturidade e especialmente do que somos capazes no Rock e no Metal com o passar da idade. Dou muito valor àquelas que ainda continuam como Sabina Classen (Holy Moses), Doro Pesch, Joan Jett, Sharon Bascovsky (Derkéta), Dana Duffey (Demonic Christ), Cadaveria e Onielar (Darkened Nocturn Slaughtercult).

Qual foi o momento mais importante da sua carreira?

Susane Hécate: Acho que o momento em que passei a assumir inteiramente os vocais no Miasthenia, porque foi bastante desafiador atuar como frontwoman e tecladista. Ter obtido certo reconhecimento e respeito do público nessa posição me deixa ainda mais motivada para continuar. Não é nada fácil tocar e cantar, porque o metal extremo exige certa performance de palco, então mais além do que agitar a cabeça, se movimentar intensamente pelo palco ou colocar os pés no retorno, o que o teclado não me permite, foco na minha energia, na expressão facial e no meu olhar na interação com o público.

O que você acha que falta no Heavy Metal Brasileiro em relação aos fãs e a imprensa especializada?

Susane Hécate: Acho que no Brasil temos bos veículos de imprensa especializada e isso é determinante na procura das bandas pelo público. Porém, este circuito midiático me parece ainda limitado, sempre preso às mesmas bandas e notícias, como forma de garantir likes e seguidores. Por isso mesmo a maior parte do público nacional só apoia e conhece mais as bandas de grandes de gravadoras europeias e americanas. Apesar de termos um número enorme de bandas de metal, o Brasil ainda é muito fraco em termos de espaços e oportunidades para shows. Por isso acho que as mídias são poderosas e poderiam colaborar mais investindo na expansão, diversificação e fortalecimento do público metal no Brasil. Precisamos de mais apoio para garantir espaços e consolidar circuitos de shows e festivais, e todos vão ganhar com isso.

Como você acha que o underground poderia se ajudar?

Susane Hécate: Se tivéssemos mais espaços consolidados para shows para se fortalecer um circuito diário e mais dinâmicos de shows pelo Brasil, como o que se tem na Europa. Para isso é preciso que o público compareça!

O que você falaria pra Susane do início da carreira?

Susane Hécate: Nunca pensei nisso! Quando penso no passado vejo situações que realmente trouxeram muitos problemas e dificuldades ao Miasthenia e me fizeram não acreditar no potencial de se fazer tantos shows. Talvez diria para a Susane lá no início “acreditar mais no potencial das apresentações ao vivo”, mas infelizmente o cenário na época era outro, era tudo muito mais difícil.

As mulheres estão conquistando um espaço maior no Heavy Metal, qual sua visão sobre isso?

Susane Hécate: Acho maravilhoso ver tantas mulheres atuantes na cena Metal, isso é um grande avanço! No passado foi bem mais difícil, mas ainda não nos desprendemos dessa “exclusividade” ou “destaque” que as bandas com “belas” mulheres ainda possuem na cena, e isso vem gerando certos constrangimentos. Não podemos ser reconhecidas simplesmente pela diferença sexual e por estar conforme o padrão de beleza ocidental, isso ainda generaliza nossas atuações e apaga a nossa diversidade. Tenho a impressão de que as poucas que ganham destaque na mídia tendem a falar por todas nós, e assim estão construindo um padrão de feminilidade no metal há um tempo. Então quando você parece não estar dentro desse padrão, acaba não sendo lembrada como “mulher no metal”. Apoiar a presença feminina é uma atitude política feminista fundamental no Metal, como estão fazendo aqui no Girls on the front, dando a oportunidade de rompermos com as generalizações sobre nós mulheres (no plural) no metal, para que possam reconhecer as especificidades e posturas diferentes das mulheres em cada desdobramento de estilo metal.

O que te inspirou a contar as histórias das mulheres no livro “Por uma História do Possível: Representações das Mulheres Incas nas Crônicas e na Historiografia” ?

Susane Hécate: Foi justamente a vontade de mostrar na história a diversidade possível para as mulheres e as relações de gênero. Este livro é resultado da minha tese de doutorado, tem uma inspiração teórica feminista e pós-colonial, por isso é um trabalho que busca desconstruir o imaginário cristão colonialista sobre a História do “império” Inca nos Andes. Mostro como os valores, interesses, crenças e vontade de poder colonial criaram uma história androcêntrica que politicamente ainda opera no apagamento de outras possibilidades de existência para as mulheres para além da maternidade, do casamento e do assujeitamento aos homens.

Você fala sobre as deusas guerreiras. A sociedade que a gente vive tem espaço para elas? Quem seriam as Amazonas de hoje?

Susane Hécate: Sim, falo sobre isso nas letras do Miasthenia, especialmente na música Coniupuayras sobre as guerreiras amazonas que aparecem nos relatos de Gaspar de Carvajal em 1542 sobre a expedição do conquistador Francisco Orellana pelo rio Amazonas. Utilizo a música como espaço de recriação do imaginário histórico, como um tipo de ficção histórica que uso o passado para comunicar sentimentos e pensamentos no presente. Falo de mulheres guerreiras do passado, porque me identifico com elas no presente na luta contra a nossa dominação. As amazonas do passado foram mencionadas em vários relatos que vão da antiguidade clássica ao período colonial na América, porém a história escrita do ponto de vista masculino/patriarcal buscou apagar essa possibilidade colocada historicamente para as mulheres, relegando a existência delas ao “mito”, como uma forma de controlar nossas identidades. Por isso, essas mulheres evocam um forte simbolismo na possibilidade de um ato político de rompimento com esse imaginário que institui e naturaliza as desigualdades de gênero na vida social.

Você pode deixar uma mensagem, para os seus fãs e leitores da Roadie Metal?

Susane Hécate: Apoiem o metal nacional! Para aqueles que apreciam o nosso trabalho, aguardem que em breve teremos novidade, estamos compondo um novo álbum para lançamento em 2021. Para aqueles que ainda não conhecem o Miasthenia, convido-os a ouvir nossos álbuns no Spotify (https://open.spotify.com/artist/2gXm7lnTjOVGhSDBA0e7kW) e assistir nossos videoclipes em nosso canal no YouTube (https://www.youtube.com/channel/UCElrJI1-xWObua14ONvuXyg). Agradeço à Roadie Metal e desejo sucesso a essa seção Girls on the front.

Contato: miasthenia.horda@gmail.com
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