GIRLS ON THE FRONT é um quadro criado por 4 redatoras para falar sobre mulheres e para encorajar outras a continuarem o seu objetivo na música e, para isso, contaremos a vida e carreira de mulheres no metal brasileiro e internacional.

A entrevistada dessa edição é a Ge Vasconcelos, percussionista do Gangrena Gasosa, e colaboradora do Hi Hat Girls, um coletivo de mulheres bateristas que oferece oficinas gratuitas para mulheres e meninas a partir dos 7 anos de idade.

Vale ressaltar que a Hi Hat Girls está fazendo 8 anos de existência e tá com uma programação bem legal, galera pode conferir no instagram do coletivo!

1. Como que surgiu o seu interesse pela música?

Surgiu bem cedo, ainda na infância. Meus pais eram muito festeiros, a casa que eu cresci tinha uma área externa que parecia um botequim e quase todo final de semana tinha churrasco com pagode. Meu pai sempre dava uma força para a banda de pagode local, a “Alegria Samba Show”, chamava pra tocar lá em casa, então eu acabei crescendo nesse meio de festa, pagode, instrumentos, percussão, Raça Negra, Barata da vizinha…

Tive interesse em frequentar uma escola de música só depois dos 20 anos, quando fui estudar bateria.

2. Musicalmente falando, quais são as pessoas que mais te influenciaram?

Dos ilustres anônimos, lembro do finado Valtinho Botafoguense, que era um desses músicos que estava sempre na minha casa quando eu era criança. Foi uma figura muito forte na minha infância. Ele tocava muito bem, tinha uma bicicleta preta e branca toda cheia de parafernalhas do Botafogo, com o banco com escudo do Botafogo, só se vestia de preto e branco e carregava um cachorro preto e branco na cestinha da bicicleta. Ele ainda era um negro retinto, então até a própria pele estava dentro da paleta de cores. Eu olhava aquela figura e tinha a certeza que músicos eram as pessoas mais legais do mundo.

Já na fase adulta eu posso dizer que meus maiores incentivadores foram os meus professores Spirito Santo e Jahir Soares, ambos membros da banda Vissungo, que eu amo. O Spirito foi meu professor em um projeto chamado Musikfabrik, onde estudei um tempo na Uerj. O Jahir foi o melhor professor de bateria que eu tive, é o famoso “baterista da Lapa”, ele tá sempre tocando na Lapa, aqui no Rio, próximo aos arcos. Ou estava ao menos, não sei como está a rotina dele com essa pandemia.

Todos homens e todos negros. Lamento não ter nenhuma mulher pra citar.

3. E como a sua carreira na música começou? Integrou algum outro projeto ou banda antes do Gangrena Gasosa?

Minha primeira experiência com banda foi na Uerj, no Musikfabrik, projeto que eu citei antes. Toquei bateria e outros instrumentos que nós mesmos construímos. Foi bem gostoso criar do zero, cortar madeira, pintar, martelar, lixar e depois tirar um som. Lembro com saudades dessa época.

Depois tentei fazer parte de outras bandas, até de bandas femininas. Sempre quis tocar com mulheres mas 100% das minhas tentativas deram errado, não encontrei mulheres com os mesmos objetivos. Eu me incomodo bastante com faltas, atrasos e outras coisas que quem tem banda só com a intenção de se divertir geralmente não se importa. Ok, tem gente que só quer tocar pra se divertir mesmo, não tem nada de errado nisso, mas eu sempre quis algo além de tocar na garagem de casa, então sempre chegava um momento em que os caminhos divergiam e cada uma ia pro seu canto.

4. Como foi pra você entrar numa banda masculina? Sentiu algum tipo de resistência ou preconceito por parte dos fãs?

Quando fui chamada pra um teste a minha primeira reação foi negar. Achei que era responsa demais entrar em uma banda com tanto tempo de carreira, os caras todos mais velhos e muito mais experientes que eu. Porra, os percussionistas antes de mim foram o Anjo Caldas que toca com ninguém menos que a Elba Ramalho e o Elijan, que gravou o Smells Like a Tenda Spirita, e aí eu pensava: que raios a Ge Vasconcelos teria a oferecer? ENFIM, PEIDEI. Peidei bonito. Achei que não era boa o suficiente, eu ia atrapalhar, fazer feio, pagar mico, sou um lixo inútil, não sirvo pra nada, a vida não é justa e bla bla bla.

Depois refleti sobre todas as minhas tentativas de ter banda e vi que estar na Gangrena era exatamente o que eu procurava, estar em uma banda com pessoas interessadas em fazer a banda crescer, pessoas com o mínimo de profissionalismo. Óbvio que isso viria com um preço, que no caso era: eu tinha que chegar no nível dos caras, tinha que melhorar. Daí calculei o tempo que eu teria pra tirar as músicas, vi que tinha um prazo bem tranquilo, confiei e decidi ir fazer o teste.

Estudei bastante e chegando lá foi horrível. Eu consegui tocar as músicas, mandei bem, não paguei nenhum grande mico, mas saí do teste como se tivesse sido atropelada. O ensaio era muito mais rápido do que as músicas gravadas. O que deveria ser óbvio se eu não fosse tão cabaço pra pensar nesse detalhe. Saí do estúdio morrendo e passei uma semana sem mexer o pescoço.

Independente do meu pescoço duro, os caras curtiram o teste, me chamaram pra banda e eu aceitei. Fiquei com raiva por me sentir frágil demais pra tocar heavy metal e usei a força do ódio pra melhorar como musicista e em poucas semanas eu já estava no mesmo ritmo dos caras. Hoje eu aguento fazer 3 shows na mesma noite. Não que isso aconteça, mas se acontecesse eu conseguiria.

No meu primeiro show me chamaram de “viado”. Passei um bom tempo ouvindo “aêêê viadooooo”, acho que pensaram que era um homem vestido de mulher. Fora isso, a aceitação foi legal, mesmo quando ficou claro que era uma mulher. A Gangrena Gasosa tem uns fãs que destoam da maioria dos metaleiros, tem muito pela-saco que curte metal, mas geralmente a galera que curte a Gangrena é no mínimo mais bem humorada, e isso já conta bastante. Não me lembro de ter passado por alguma situação desagradável.

Coletivo Hi Hat Girls

5. Quais dificuldades que você mais tem/teve que enfrentar como artista?

A maior dificuldade é lidar com o machismo mesmo (ohhh que novidade, não é mesmo?). Os que chamam de mimimi, saibam que ninguém mais do que eu gostaria de encerrar esse assunto. Mas enquanto vai acontecendo a gente segue reclamando. O machismo coloca vários “quebra-molas” no meu caminho, e esses quebra-molas não existem para os caras da minha banda. Meu gasto de energia é sempre alto lidando com esse assunto. Seja batendo de frente com alguém que tenta diminuir minha capacidade ou fazendo o papel da Maria-Palestrinha pros caras da banda entenderem meu ponto de vista e enxergarem os problemas que só eu enxergo em algumas situações. É cansativo fazer esse papel, ainda que seja pra pessoas dispostas a ouvir.

Já passei por situações escrotíssimas em locais de show com segurança, produtor, técnico de som, técnico de palco. Não vale nem a pena contar, só bad vibe, se eu começar vou escrever uma bíblia. Sei que hoje a Gangrena Gasosa não toca em alguns lugares por conta dessas situações e tem gente que diz que a banda é “marrenta”, virou “estrelinha”. Meu mais sincero foda-se.

6. Têm algum outro projeto em vista?

Eu estou trabalhando na criação do site da Borda. Antes da pandemia a Borda seria uma produtora de conteúdo sobre o underground, com foco em rock, metal e na música experimental. Veio a pandemia e PÁ, limitou bastante as nossas possibilidades mas vamos seguindo dentro do possivel, estamos fazendo o site, tá ficando lindo. É uma projeto meu e da minha amiga Leandra Lambert, bruxona da música experimental, na pista desde os anos 90. Leandra e eu nos conhecemos durante uma residência artística. Nós fomos duas das 50 artistas selecionadas para o programa ASA (Arte Sonica Amplificada), parceria do Oi Futuro e das instituições britânicas British Council, Lighthouse e She Said So. O ASA visa aumentar a participação de mulheres nas carreiras da música e do som, e é um programa que eu recomendo que as minas da música fiquem de olho. Só tinha eu de banda de metal lá. Precisamos falar da solidão da mulher metaleira nos ambientes de profissionalização.

Também tenho algumas músicas autorais que pretendo colocar pra rolo, tô trabalhando nessa construção também, ainda preciso vencer a timidez. Vai rolar.

7. Sobre o Gangrena, como estão os planos de vocês para o pós-pandemia?

Minoru (guitarrista) e Alex (baterista) viraram máquinas de fazer música nessa quarentena. Todo dia mandam uma coisa nova pro grupo, estamos com uma cacetada de músicas novas encaminhadas, eu não tô nem dando conta de acompanhar. Acredito que depois da pandemia a gente vai ajeitar essas músicas novas e partir pra gravar um disco novo.

Agora o primeiro plano da banda, primeirão meeeeesmo de todos, é fazer um “ensaio- rave”. Sentimos falta de estar junto, tomar uma cerveja, falar bobagem, fazer barulho. A gente ensaiava regularmente, toda semana, tendo show ou não. Ensaiamos no estúdio Música Tijuca e lá é como se fosse a nossa segunda casa. A Clarisse, que gerencia o estúdio, é uma querida e estava sempre tomando uma cervejinha com a gente, eu tô morrendo de saudades de lá e de todo mundo que faz parte daquele ecossistema.

Por enquanto o plano é só não morrer.

8. A cena autoral brasileira nós sabemos que já estava respirando por aparelhos antes da pandemia né, o que você acha que pode ser feito daqui pra frente para que o cenário se fortaleça?

Falta um monte de coisa, eu poderia falar de investimento em cultura, por exemplo. Mas vou focar no que mais me agonia. Pode até parecer clichê – e é – mas eu acredito que falta principalmente união. União que não seja só em um sentido raso, que não represente apenas uma quantidade de pessoas ocupando o mesmo espaço físico, que não seja só uma palavra bonitinha em um logotipo. A galera precisa urgentemente parar de ver outros artistas como concorrentes. Não existem concorrentes. Eu transito em vários meios musicais diferentes, apesar de tocar em banda de metal. E vejo que em outros estilos a galera já entendeu que sozinho não se vai a lugar algum e isso funciona muito bem. As pessoas crescem juntas.  

Eu sempre repito: sozinho você não consegue nem ser corno.  

9. Qual o seu Top 5 de álbuns que te formaram como musicista?

– Disraeli Gears (Cream)
– Os Mutantes (Mutantes)
– Kaya (Bob Marley & The Wailers)
– The piper at the Gates of Down (Pink Floyd)
– Raining Blood (Slayer)

10. Qual conselho que você dá pras minas que querem seguir na música?

A rivalidade feminina é uma inimiga silenciosa que deve ser aniquilada sem dó nem piedade. A maledicência é como uma âncora acorrentada aos nossos pés. FUJAM dessa energia de merda, policiem-se. Destruam essa ideia escrota que o patriarcado enfiou goela abaixo da gente. Juntem-se com outras minas, coloquem os talentos e habilidades de cada uma na mesa, façam escambo, sejam voluntárias nos projetos das outras, dêem um jeito de fazer acontecer mesmo quando não há grana. E quando algo der certo pra outra mina, façam um esforço pra se sentir genuinamente feliz pela conquista de outra. É possível. E em um nível mais profundo, a conquista de uma é sim uma conquista de todas.

A parte do “trabalhar de graça” nem todo mundo concorda e eu entendo o ponto de vista, mas falando aqui por mim e pela minha banda: sem o “de graça” a gente não teria conseguido, por exemplo, lançar um documentário de quase 2 horas com um nível alto de qualidade técnica, colocar na TV aberta, ter o filme passando nos maiores festivais do gênero como o MIMO e In-Edit. Nada disso aconteceria sem a galera que se dispôs a trabalhar de graça pra gente só porque gostava de nós e acreditava no potencial do projeto.  

Outra coisa importante é que é saudável pra nós, mulheres, racionalizar. Racionalizar tudo que for racionalizável, pensar matematicamente, investir em inteligência emocional. Nós temos as mesmas ferramentas que os caras pra fazer qualquer coisa, braços, mãos, pés, cérebro, não existe motivo lógico pra gente se achar menos capaz que eles. Ainda não inventaram um instrumento que se toque com o pau. Muitas vezes o que falta pra gente alcançar um objetivo como artista é conseguir controlar os sentimentos que bloqueiam a nossa capacidade de enxergar. Se a gente consegue ver a realidade como ela é, consegue sair das armadilhas da egotrip, consegue ver onde precisa melhorar, onde errou, onde acertou, aceita críticas construtivas, aprende quais pessoas vale a pena dar ideia, quais pessoas tão ali só pra atrasar o seu lado e merecem ser chutadas das nossas vidas, essas coisas.

Agora pelo amor de satanás, SÓ VAI. O melhor equipamento é o que você tem, não espere condições perfeitas pra começar, só vai. Tô de saco cheio de contar nos dedos a quantidade de mulheres nos festivais onde a Gangrena Gasosa toca, seja como artista ou como equipe técnica, tem que mudar isso aê.

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