Quem entrou desavisado no Hangar, A Casa do Ócio no dia 19 de outubro, com certeza teve uma noite repleta de acontecimentos. A energia no lugar beirava a um misto de mistério e irreverência. Mas, bem, haviam poucos desavisados naquela noite. Todo mundo sabia muito bem o que estava fazendo por lá. Ou ao menos demonstraram com uma boa dose de ansiedade e alegria. Para quem não é de Curitiba, ou não conhece, o Hangar é uma das casas em que o underground é extremamente vivo. Vários músicos da cena circulam por ali para verem outros músicos também da cena. No caso do dia 19 de outubro, havia também uma banda que não fazia parte da cena curitibana, mas que tem tanta história que atraiu bastante gente e mais um pouco. Prova disso foi o fumódromo que estava tão cheio que as pessoas mal conseguiam se movimentar por ali.
O espaço é um grande casarão antigo, você sobe as escadas e passa por uma portaria e, então, sobe mais umas escadas. A primeira coisa que se vê da porta é o bar, à direita havia uma mesa com os merchans. Uma roleta em cima da mesa soava muito convidativa para a sorte. O caminho para o palco fica do lado esquerdo, por trás de uma pesada porta preta. E é ali que tudo acontece, dentro do quarto escuro com homenagens a grandes bandas na parede. O banheiro é um espetáculo à parte. As paredes são repletas de matérias antigas das grandes revistas de rock/metal brasileiras, que falam desde a vinda de Janis Joplin ao Brasil, passando por tretas do Ozzy, e entrevistas com membros de grandes bandas como Angra, Sepultura, e fofocas como a vez em que o Eddie Vedder assistiu a um show camuflado, aqui no país, e praticamente não foi reconhecido.
A primeira subir ao palco foi Dalborga, por volta das 21h30. A proposta de uma música com pitadas de sarcasmo e ironia, muita gritaria e um vocalista com tanta energia que não parava em um só canto do palco, é a pegada da banda. A irreverência é o ponto norteador de Dalborga, que busca o barulho não convencional como prioridade estética. A ideia é que a liberdade criativa seja projetada no palco, ao vivo, em âmbito sonoro único e com uma alta rotatividade de músicos que permite ser quase uma jam moderna. Dalborga é uma banda que tem seu som definido como Noisecore. Segundo o vocalista, Clóvis Roman, a banda tem o objetivo de trabalhar o experimentalismo e a independência ter suas músicas criadas em cima do palco, durante o show, que foi intitulado de “No More Tours 2019”. Entre as músicas tocadas estão “Corote Gourmet”, “Pequenas Igrejas, Grandes Fogueiras”, o clássico “A Hebe Foi Pra Fita”, “Maria Padilha”, “Pomba Gira”, “Eu fico desgraçado da minha cabeça”,“Um Abraço Pra Galera Do Slayer”, “Micareta Satanista”, “Com o Bolso Cheio de Merda”, “Caveira Metal”, entre outros.
Depois de uma pausa que permitiu ao público passear pelo fumódromo, comprar uma bebida ou ler um pedaço de artigo no banheiro, mais um show começou. “Pra quem não conhece nós somos o Chubasa. Pra quem conhece continuamos sendo.”, disse o vocalista. A irreverência aqui, além das piadas, ficou estampada nas máscaras usadas pelos integrantes. Segundo a própria banda, em seu Facebook, a definição seria: “Banda Curitibana de Death Metal com dois baixos e sem nenhuma guitarra!!”. Inclui-se também a biografia: “Banda bem bandada,/ que tem bandado/muito por essas bandas,/Ultimamente está nos últimos/ultimatos de todos aqueles/que estão se ultimando por ai.”. Só por aí já se tem uma ideia do clima de uma ironia poética, por trás das máscaras de Batman.
Se a irreverência marcante da noite ainda não tivesse ficado tão clara, mesmo diante do ambiente escuro digno dos templos de metal underground, passeou de lanterna pelos olhos assim que a terceira banda tomou conta do palco. Já era quase 23h30 quando o vocalista da CrotchRot subiu ao palco vestido do que poderia ser identificado como um unicórnio. Muringa usava uma espécie de pijama branco com listras coloridas, uma tiara colorida com chifre único e um óculos branco, além disso também utilizava um efeito que deixava com aquela voz de gás hélio. A banda é formada por Hugo “Muringa” nos vocais, Cynthia na guitarra, Angela no baixo e André na bateria, e eles tocam um pornô gore grind. No set list estavam: “Sarrada Aérea”, “Tesão de Vaca”, “Brochas”, “Pelas Tetas”, “Lançamento”, “Goregrind”, “Orgia”, “X-Gordinha”, “Dialética do Pau”, “Molho Madeira” e “Virilha Podre”.
É importante estabelecer aqui que cada banda tinha sua própria personalidade, ainda que todas elas calcadas pela irreverência, seja nas roupas, na música, nas letras, ou em todas as anteriores. Após mais uma sessão de leitura, uma respirada de ar com um pouco de fumaça, uma checada nas coisas legais do merchan, hidratação e até mesmo uma anestesia das cordas vocais, o público se reuniu mais uma vez para além da porta preta. A última e tão esperada banda da noite era o Gangrena Gasosa.
Pouco depois da meia-noite, subiram ao palco Zé Pelintra (Angelo Arede, vocal), Omulu (Eder Santana, vocal), Exu Caveira (Minoru Murakami, guitarra), Tranca-Rua (Diego Padilha, baixo), Pomba Gira (Gê, percussão), e Exu Tiriri (Alex Porto, bateria). No set list: “Se Deus é 10 satanas é 666”, “Encosto”, “Surf Iemanja”, “Black Velho”, “Hardcore Grangena DFC”, “Terreiro do Desmanche”, “Chuta que é macumba”, “Cambonos from Hell”, “Gente Ruim”, “Afirma seu ponto”, “Darkside”, “Matou a Galinha e Foi Ao Cinema”.
O que se desenrolou depois foi uma sequência desenfreada de músicas, em que o público, também desenfreado cantava, pulava e gritava em uma espécie de frenesi intenso, preenchendo praticamente todos os lugares, especialmente os mais próximos do palco. “A energia que vem daí vem pra cá e a gente manda de volta essa porra caralho”, disse o vocalista Angelo Arede. A proposta da banda é em torno do saravá metal, desde uma incorporação dos personagens do ocultismo brasileiro até a temática que permeia as letras das músicas. “Tem Halloween né?”, disse Angelo, “Halloween não.”, respondeu Eder Santana, “É o dia de quem meu cumpadi?”, continou Zé Pilintra, “Do Saci Pererê/ Ele pula/ ele corre/Atrás de você.”, emendou Omolu já indicando qual seria a próxima música. “Centro do Pica Pau Amarelo”, também tocada na noite em questão, referencia uma das principais obras da literatura brasileira, com toda a carga irreverente da banda.
Mas as músicas do Gangrena Gasosa ainda fazem uma crítica social a alguns setores da sociedade, como as letras de “Fiscal de Cu”, “Carnossauro Diet”, “A Supervia Deseja a Todos Uma Boa Viagem”. “Headbanger Voice”, “Quem gosta de Iron Maiden Também gosta de KLB” são uma clara ironia, ou uma deliciosa brincadeira com o cenário do metal. E “Matrix”, bem, é uma viagem. Angelo e o público formaram um dueto, o vocalista dizia “eu não entendi”, e o público respondia “Matrix”. No final do show, os músicos literalmente foram para a galera. Uma fila de fãs se formou para tirar fotos e conversar com os artistas.