Rafael Bittencourt é com toda certeza um dos maiores guitarristas brasileiros. Aos 17 anos ele começou a compor as músicas do que seria a primeira demo-tape do Angra, mas ele não parou por aí e se tornou Bacharel em Composição Musical e Regência. Rafael é fundador do Angra, uma das primeiras bandas de symphonic metal do mundo com mais de 5 milhões de álbuns vendidos. Também criou o Bittencourt Project para explorar sua versatilidade como compositor. Ao todo, Rafael tem uma discografia de 24 títulos lançados mundialmente, incluindo singles, CDs, EPs e DVDs. Ele conversou com a Roadie Metal em uma entrevista inédita.

Sobre a Pandemia e as bandas

1 – Muitas bandas estão confusas e perdidas devido à Pandemia (o que é natural) , com a sua experiência, qual a melhor forma de se tirar algo positivo dela?

Rafael Bittencourt: A primeira coisa é que a pandemia é uma situação que não implica só na profissão das pessoas e não implica só na questão das pessoas estarem trabalhando, desculpa, não implica só nas bandas pros artistas. A pandemia ela vem para todo mundo como uma grande transformação até comportamental, né, um novo mundo que aparece aí. Então acho que as bandas têm que estar atentas porque nós, como artistas, representamos o público, nós damos vozes as coisas que as pessoas não sabem dizer, não conseguem dizer, elas sentem, mas não conseguem dizer, então, o artista representa essas pessoas. A primeira coisa é a gente entender que não estamos sozinhos e a gente, como artista, tem a responsabilidade de mostrar uma perspectiva diferente. O que diferencia o artista do público? O artista consegue enxergar a sociedade de fora da bolha, de fora de dentro da sociedade, ele consegue olhar como que pegar um foguete imaginário, criativo, sair dessa sociedade e olhar de fora, voltar dessa viagem e fazer suas observações. Acho que o que a gente precisa agora, como artista, é sair da bolha com nossos foguetes, olharmos de diferentes maneiras e trazermos essas visões, na perspectiva de um artista mesmo, que às vezes vêm como fantasia, como alguma coisa muito absurda, mas não tem problema, o artista não precisa ter a lógica como bússola.

2- O que tem te inspirando atualmente?

Rafael Bittencourt: O que tem me inspirado é perceber que tem grupos de pessoas que estão enxergando parecido comigo, ou seja, na verdade, é isso que nos conduz hoje em dia. O mundo se transformou numa compilação de bolhas, essas bolhas às vezes não se conversam, né? O cara (que) tem uma afinidade com determinada religião, ele não conversa com outras pessoas hoje em dia, ele está fechado num grupo com várias pessoas daquela determinada religião. A mesma coisa acontece com opinião sobre política, as pessoas se diferenciam demais nas suas opiniões sobre políticas e elas também não conversam com outras pessoas que tem opiniões diferentes, então quem está procurando um caminho mais no meio, quem está procurando por coisas que não sejam tão… opiniões que não sejam tão extremistas, essas pessoas estão um pouco órfãs, que hoje em dia as bolhas radicais tomam proporções maiores. Hoje, quem procura um outro caminho de bom senso tá meio órfão, sem bolhinha. Mas eu sou muito inspirado pelo Harari que escreveu o livro Sapiens, e também o Homo Deus, e saber que as pessoas também estão abrindo a cabeça para uma visão mais antropológica do que nós estamos vivendo me dá uma sensação muito boa de que o mundo tem solução.

3 – Acredito que não haverá mais o “voltar ao normal”, qual será a primeira coisa que pretende fazer em relação a sua carreira quando tudo se estabilizar, além dos shows?

Rafael Bittencourt: Eu não tô esperando tudo se estabilizar, como você mesma disse, que não acredita mais nesse normal, né? Porque assim, mesmo que tudo pareça estar normal as pessoas estão tão traumatizadas, tão sensibilizadas, tão fragilizadas com essa sensação de vulnerabilidade, a morte, rondado as nossas casas de maneira tão próxima e de maneira tão trágica, as pessoas sem poder dizer adeus para familiares, esse tipo de vivência traumatiza, ela pega a gente num nível muito profundo, então todas as pessoas do planeta viveram isso. Se tudo volta ao normal as pessoas já estão transformadas, ou seja, nunca mais vai ser o mesmo. Mas, ainda assim, acho que nada vai ser como antes, porque a gente precisa ter mais cuidados agora, as pessoas estão mais cuidadosas. Quando voltarem os shows ninguém mais vai para os shows sem máscaras, sem nada, porque é um risco muito grande. Então assim, a primeira coisa que eu pretendo fazer, não acho que haverá uma data né? Tipo, olha, voltou ao normal e a data é essa, então não posso eleger uma primeira coisa, mas eu acho que… e eu já sou um cara muito… eu gosto de ficar mais recluso e tals, então nunca fui muito de grandes aglomerações, tá? Mas barzinho, por exemplo, é um negócio que eu gosto. De repente ir pra um barzinho, ficar na calçada, tomando uma com os amigos, sem medo. Acho que seria uma das coisas que eu faria. Outra coisa é ver meus amigos de banda, poder ensaiar, ficar confinado dentro do estúdio por várias horas, sem medo de expor alguém ao risco.

Angra e Bittencourt Project

4 – Sobre o DVD gravado em 2018 (OMNI), a maioria dos fãs (inclusive eu) estão muito ansiosos. Há alguma novidade sobre ele que possa falar??!!

Rafael Bittencourt: Sim, a gente esteve lá esses dias revendo esse material e realmente tivemos alguns problemas. Câmeras que nós contratamos que não funcionaram porque acabou a luz, uma série de coisas que foram contra as nossas expectativas lá, mas a gente está lidando com o material que a gente tem e bem provavelmente os fãs poderão assistir isso, se não for no final desse ano, muito provavelmente no começo do ano que vem.

5 – No ano que vem o Angra completa 30 anos de estrada, e o seu álbum Rebirth completa 20 anos. O que podemos esperar para 2021?

Rafael Bittencourt: Bom, o Rebirth a gente pretende já em maio fazer uma turnê tocando o Rebirth na íntegra. Eu acho que isso vai ser uma coisa bem legal, vai ser um bom momento de revisar, esse momento de renascimento que a banda teve, então tocar o Rebirth na íntegra é um dos planos. Eu quero fazer um show de 30 anos no final do ano, se não for no dia do meu aniversário que é dia 22 de outubro, que é quando eu comemoro o aniversário da banda também há muitos anos. Porque quando eu comecei a banda, quando a gente já estava bem engajado ali, eu fiz uma festa de aniversário e eu lembro que foi uma das primeiras vezes que consegui reunir o Marco Antunes, o Luís (Mariutti), todo mundo e não tinha o Kiko (Loureiro) ainda, mas já tinha o André (Matos) e já tinha uma ideia da banda e eu já tinha batizado de Angra. Então, no meu aniversário, eu comemoro geralmente o aniversário da banda também. Mas se não der tempo de preparar esse show para outubro, a gente faz ele em novembro ou dezembro. Muitas outras coisas. Eu quero fazer um documentário, quero fazer uma biografia, um livro, eu tenho alguns produtos licenciados na área de jogos também que eu quero fazer, licenciamento como óculos e essas outras coisas eu acho que seria legal, ainda não tenho muita coisa confirmada, mas já estou conversando com as pessoas. A gente quer relançar o catálogo, seja em vinil ou em caixas com todos os CDs. Então nós estamos correndo atrás na parte de licença fonográfica, que tem algumas pendências do passado de maneira geral. Outra coisa que eu quero é resolver a relação entre todos os membros e ex-membros para que todo mundo consiga orbitar ao redor do Angra, orbitar ao redor dessa Deusa do Fogo de maneira saudável e autossustentável.

6 – No próximo álbum do Angra, podemos ter algo sobre a situação atual ou alguma crítica em relação ao nosso País?

Rafael Bittencourt: Sim, essa coisa das bolhas sociais de como elas vão crescendo e criam duas grandes bolhas opostas e isso está acontecendo no mundo inteiro, nem é só no Brasil, eu acho que é um problema muito mais grave do que o próprio Covid, é um problema que está alienando as pessoas e eu acho que a gente poderia falar isso sim no próximo disco. Todos os discos do Angra, especialmente os mais recentes porque eu fui aprimorando a maneira de escrever, eu sempre escrevo sobre a situação que eu vivo, né? São metáforas da minha própria vida, então eu procuro encontrar maneiras de dizer as coisas que eu vivo com palavras que sirvam para todo mundo né. Eu não coloco detalhes que são particulares, mas procuro transformar em algo que seja um pouquinho mais geral para que todo mundo se identifique.

7 – Como costuma ser seu processo de criação? Normalmente há alguma ligação com álbum trabalho do passado, como são feitas essas ligações?

Rafael Bittencourt: Eu tenho uma matriz criativa que ela vem, são como caixinhas dentro da cabeça, são como acessos para um mundo imaginário que, eu falei um pouco sobre isso no Secret Garden (2015), que é o jardim secreto. É como se eu entrasse nesse jardim desde criança e lá recolhesse algumas flores, algumas coisas que se transformam em ideias. E existe uma lógica, uma certa, existe um senso nesse jardim, ele não é aleatório completo, ele tem uma cara, tem uma estética e uma espécie de lógica criativa. Então eu me recolho e vou nesse jardim, e aí as coisas se conectam, né, porque tudo vem do mesmo jardim. Meu processo é esse.

Foto: Henrique Grandi

8 – Sobre o Bittencourt Project, há chances de termos um novo álbum?

Rafael Bittencourt: Chances fortíssimas. Eu compus uma música inédita já, eu não lancei ainda e tô com muita vontade de engajar o pessoal para fazer mais conteúdo, mais músicas e tals, porque é um projeto que significa muito para mim, é um projeto que diz muito sobre quem eu realmente sou. Ele revela muito a minha pessoa. Então eu utilizei o Bittencourt Project para desconstruir a minha figura como o guitarrista do Angra, o guitarrista de uma banda de Power Metal e coloquei um cara um pouquinho mais normal, mais simples. Então ele é importante para mim, importante para a minha saúde mental, porque o avatar do Rafael que está no palco do Angra é um avatar muito mais pesado de carregar porque é um avatar muito mais construído para contentar os fãs, né, do que a identidade minha no dia a dia. Já no Bittencourt Project o avatar tem menos máscaras.

Rafael Bittencourt 

9 – Você se sente muito cobrado pelos fãs antes e depois de lançar um trabalho novo ??

Rafael Bittencourt: Sempre! Sempre muito cobrado. Os fãs hoje têm uma proximidade muito grande com o artista. Eles veem o que o artista come, o que o artista gosta, o que ele faz de dia, de manhã, de tarde e tals. Então existe também uma desmitificação. Aquela coisa, distanciamento não existe mais de maneira tão clara, então faz com que o fã muitas vezes cobre bastante. Tem momentos que eu sinto que a posição do fã é semelhante a um cliente de restaurante e eu me sinto como um garçom. Até uma vez eu estava na padaria, um rapaz estava atrás de mim, eu nem tinha percebido na fila para pagar o pão. Só ouvi uma voz na minha nuca: “então irmão, tá demorando para soltar o próximo do Angra”. O que aconteceu, o cara veio me cobrar porque estava demorando para soltar o próximo, bravo né, bravo como se fosse culpa só minha ou como se fosse obrigação minha de trazer logo um prato quentinho para ele que ele acabou de pedir. Como se ele tivesse num restaurante, sei lá. Então assim, o fã é muito exigente e cobra sim. Cobra que seja assim, cobra que seja assado, reclama da capa, reclama disso, reclama daquilo, mas eu acho muito importante a gente não ceder completamente. É bom entender as demandas, mas não ceder completamente porque eu acho que o artista também tem uma responsabilidade um pouco didática, cultural, educativa mesmo, de mostrar caminhos para abrir a cabeça do fã, para o fã justamente ver novas maneiras de olhar, novas maneiras de pensar. Quando o fã quer mandar no artista, ele acha também que ele sabe o caminho e o artista só deve obedecer. Eu acho que é o contrário, o artista propõe novos caminhos, vários artistas propõem novos caminhos e isso vai gerando uma efervescência na cabeça e nas emoções do público.

10 – Se fosse definir sua vida com alguma música sua e se fosse definir a atual situação que vivemos com alguma música do Angra, qual seria?

Rafael Bittencourt: Definir minha vida com uma música minha, eu acho que Holding Back The Fire (Bittencourt Project) e Silent Call (Bittencourt Project), definem bem, definem a questão de que as coisas para mim, precisam de profundidade, eu não faço nada que não tenha um valor muito profundo, uma conexão com a minha verdade, e a do Angra, se fosse atual situação com uma música do Angra acho que a própria música Z.I.T.O, que fala dessa necessidade de redescoberta, de olhar as pessoas, desse resgate de olhar as pessoas um pouco mais livre, mais adolescente, mais infantil sobre a vida, sobre o mundo.

11 – O que o Rafael de hoje falaria para o Rafael do começo da carreira?

Rafael Bittencourt: Eu falaria o seguinte: não se abale tanto com as decepções que você vai sofrer com os seus colegas, seja forte e se prepare, as decepções vão acontecer. E para você prevenir as decepções, converse, converse muito muito antes. Porque a gente começou tudo muito rápido, muito jovem, então a gente não tinha maturidade para acertar de antemão uma série de coisas, ou seja, para combinar de antemão uma série de coisas. E é muito difícil fazer isso mesmo porque na vida a gente acaba aprendendo, só batendo a cabeça, a gente aprende, amadurece depois de cair muito, a gente aprende a andar depois de cair muito, aprende a andar de bicicleta depois de ralar muito o joelho e cair também. Então é difícil isso aí, eu falaria uma infinidade de conselhos, a respeito também da gestão, não se preocupa só com a parte artística, se preocupa com a gestão, eu sempre deleguei a gestão para outras pessoas e confiei muito nas pessoas, mas eu acho que a gente como artista tem que ter essa preocupação hoje em dia. É o que eu falo para bandas que eu oriento.

12 – E para finalizarmos, deixe um recado para os fãs e os leitores da Roadie Metal.

Rafael Bittencourt: Quero agradecer a Roadie Metal por todos os serviços que vocês prestam aí, a imprensa especializada em metal presta um serviço muito importante para todos os músicos, todo mundo que está envolvido, os profissionais e os próprios fãs, né, para manter a coisa girando. Então eu quero agradecer vocês que estão levando as minhas ideias, minhas palavras para as pessoas, eu quero agradecer mesmo esse serviço e mandar um abraço a todos aí que chegaram até o final dessa entrevista.

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