O título de “camaleão” viria “oficialmente” em caráter posterior, mas o sentido imputado a alcunha já surgia aqui, no “The Man Who Sold The World”. Em seu terceiro álbum, nascia a atitude artística que permearia toda a trajetória de David Bowie: a inquietude somada a transgressão! Após finalmente vir aos holofotes (mesmo não sendo um sucesso comercial) com o caráter sofisticado do anterior “Space Odity” (no lançamento recebeu o nome de “Man of Words/Man of Music”, sendo rebatizado como ficou eternizado três anos depois), no qual trazia personalíssima elegância e uma produção primorosa de Tony Visconti, em nove canções que permeavam com desenvoltura por folk, art-rock e psicodelia, sua proposta musical perante ao público e mercado soava misteriosa…
O que pretendia David Bowie trazendo um panorama tão multifacetado? Algo incomum naquele final dos anos 60, onde novos estilos surgiam com força e os artistas eram notórios na alcunha de defensor do gênero expoente em questão. O primeiro clássico (a faixa-título), falava de viagem especial (a inspiração foi o clássico “2001 – Uma Odisseia no Espaço”), com tons melancólicos. Um tema bastante em voga naquele momento, após a ida do homem a lua quase simultaneamente ao lançamento. Seria bastante pertinente continuar sua saga interplanetária, não acham? Para Bowie, a repetição (a não ser em trabalhos que surgiam pensados para uma sequência) seria algo pouco relevante ao seu dicionário.
“The Man who Sold The World” (saia quatro meses após o anterior, no dia 4 de novembro de 1970, pela gravadora Mercury) é a primeira parceria com a antológica banda “The Spiders from Mars” (que teria um papel ainda mais impactante a frente), e onde sua característica de “efeito esponja” ficaria latente. Esclarecendo a terminologia, nitidamente o futuro astro inglês foi “sugado” pelo momento vigente (uma de suas marcas registradas incandescia), onde o “hard rock proto heavy-metal” e o “rock progressivo mais sinfônico/étnico e menos lisérgico” surgiam com força total, e são as principais influências sonoras do álbum.
Outra coisa importante a se destacar, é a capa provocadora, onde Bowie posa deitado convidativamente (apesar do traje comportado) em um sofá, vestido de mulher. O glam rock em sua atitude andrógina nascia ali! Outro marco são as letras. Sua verve poética se faz extremamente elaborada e com múltiplas possibilidades interpretativas, identidade que também permearia a partir deste disco. Mais curiosidades: a gravação aconteceu em uma mansão eduardiana, que foi descrita pela equipe energeticamente como “a sala de estar do Conde Drácula”.
Por várias vezes os músicos faziam longas jam sessions, e o enfoque preponderante na parte instrumental, deu a impressão de um disco mais “conjunto” (e a premissa era ser solo) devido aos grandes solos e improvisações. Bowie estava no início de uma paixão avassaladora por Ângela (sua futura esposa), e o caráter hedonista aventureiro de ambos, fez com que se distanciasse das gravações mais do que deveria. Os “The Spiders from Mars” chegaram a requisitar participação na autoria de algumas canções e o clima esquentou! Mas felizmente se resolveram durante o processo (com a ajuda de Tony Visconti), e a brilhante história não foi interrompida. Vamos ao faixa a faixa:
“The Width of a Circle” abre o álbum com seus mais de 8 minutos, em tom épico e pesado. A guitarra de Mick Ronson é simplesmente genial, tanto individualmente, quanto na forma que “costura” as várias referências que citamos anteriormente. A voz de Bowie soa mais estridente que o habitual, o que viria a ser uma marca registrada do glam rock desde então. A letra transgride de forma soturna, narrando um encontro sexual com o diabo. As alternâncias crescentes da encore, “arrepiam” e impactam, é impossível passar incólume a essa grande canção! É uma experiência que inevitavelmente mexe com o ouvinte em alguma esfera…
“All the Madmen” retrata a loucura, numa viagem lisérgica de grande incidência progressiva, com ecos, efeitos e sintetizadores levando o interlocutor para o questionamento da insanidade. Carrega uma teatralidade na interpretação, que também se tornaria uma grande marca registrada, que ficou cada vez mais intensa sequencialmente. Bela música! A terceira, “Black Country Rock”, carrega nas influências citadas no título, além de uma forte influência “bluezera”, e consegue ser pesada e acessível simultaneamente. Mais um belo trabalho de Ronson nas guitarras (grande riff !), é um “petardo” irresistível!
“After All” carrega nas raízes folk com ares etéreos e experimentais, e novamente a sonoridade se faz como fio condutor para a história contada com belos vocais carregados de emotividade. A crítica Ana Paula Ferreira faz uma precisa avaliação da evocação mística no contexto: “A expressão “oh by jingo”, por exemplo, é utilizada com muita frequência, e deixa sempre em dúvida se pretende que seja associada a uma evocação a Deus ou que simplesmente expresse surpresa. Para além disso, David Bowie menciona que o homem é apenas uma criança mais alta, e que é também um obstáculo. A futilidade da procura de significado por sermos todos muito pequenos parece também ser uma ideia presente.” Fim do lado A.
“Running Gun Blues” inicia o lado B carregando um tom histriônico que remete a Syd Barret (um dos seus grandes ídolos). Mick Ronson traz a devida maestria no “maneirismo blues” (citação do título mais uma vez). A letra aborda mais um tema delicado, um soldado que se questiona sobre seus métodos na Guerra do Vietnam. A banda mostra uma coesão sonora surpreendente!
A sétima faixa, “Saviour Machine”, tem a pitoresca narrativa de uma máquina que está sendo construída com o propósito de salvação, com Bowie suplicando para que demovamos da ideia nesta “crença” (voltamos a essa temática humanística como questionamento). Mais uma “pauleira” hard de ares progressivos que beira ao sublime! É realmente primoroso o trabalho de produção de Tony Visconti em todo o registro. “She Shook Me Cold “ é pesada e lasciva até a alma! Discorre sobre sexo sem pudor, com um instrumental poderosíssimo. Mais uma grande canção, com o final em clima de jam session simulando um orgasmo!
A mais enigmática é justamente a faixa-título, que soa como uma metáfora para a evolução e o crescimento do ser humano, simultaneamente dando a entender que pode ser o encontro com uma criatura mítica superior (Deus? Diabo?). Os vocais de Bowie se superam de forma incrível, e absurdamente só foi se tornar o hino que merecia 23 anos depois, na regravação do Nirvana em seu “MTV Unplugged in New York”. Isso mostra a força do repertório disponibilizado aqui defronte ao tempo. Impressiona como soa atemporal e “envelhece” que é uma maravilhosa!
Fechando o disco, “The Superman” filosofa sobre a eternidade, concluindo “The Man Who Sould The World” exatamente como iniciou: pesado, intenso e épico! Apesar de não ter tido a visibilidade que merecia, foi relativamente bem sucedido nos EUA e razoavelmente no Reino Unido. Mas consistiu na construção de mais alguns degraus que o levariam ao topo posteriormente. O status de clássico inquestionável viria ao longo do tempo, conforme Bowie chegava a status mitológicos de popularidade e sua discografia era dissecada por completo.
O álbum foi citado como influência dos elementos de goth rock, darkwave e “experimentação interplanetária” assumida para artistas como Siouxsie and the Banches, Nine Inch Nails, Gary Numan, The Cure e John Foxx. Cinquenta anos após seu lançamento, a relevância continua incensada a “enésima potência”. Obrigado por tudo, David Bowie! “The Man who Sold of the World” disponibilizado abaixo na íntegra para audição: