O Rock se metamorfoseia. Nasceu, se transformou e gerou filhos que, por suas vezes, seguiram a carreira do progenitor e se metamorfosearam também. Tal como o estado líquido da matéria, o Rock, e também o nosso Heavy Metal, se adaptam às mais diversas situações geográficas, históricas, culturais e de cotidiano, dando origem assim a novos estilos e gêneros, sem nunca abandonar suas essências pétreas.
O Heavy Metal nasceu no começo da década de 70 trazendo peso e velocidade ao Rock que dominava na época. Black Sabbath e Deep Purple pavimentaram o caminho para que outros nomes que emergiram um pouco depois como Judas Priest e Motörhead assentassem de vez do que se tratava o estilo, dando assim chance para que nos produtivos anos 80 os sucessores da vez dividissem e sacramentassem, graças a suas criatividades, influências e circunstâncias, os gêneros do Metal. Alguns desses gêneros surgiram aproveitando algum estilo de Rock já praticado antes, adaptando-o e recheando-o com as características do Metal.
Por exemplo, temos o Metal Progressivo, que na prática é um filho do Rock Progressivo setentista. As músicas longas e repletas de arranjos complexos, que requeriam um alto conhecimento de música erudita e o apoio de instrumentos como teclados e flautas, inspiraram grupos como Fates Warning, Queensrÿche e Dream Theater a criarem uma “versão metalizada” do gênero. Pode-se conceber do mesmo raciocínio a existência do Stoner Metal em relação ao Stoner Rock, muito embora neste caso seja mais difícil determinar onde um termina para que o outro comece.
Entretanto, nem sempre essa análise é válida. A exceção à regra provem dos termos Rock Gótico e Metal Gótico. Apesar de ambos os estilos compartilharem o sobrenome, eles não possuem características musicais em comum de um modo geral. Sendo assim, não se pode afirmar que o Metal Gótico é um filho musical do Rock Gótico, assim como o Metal Progressivo é filho do Rock Progressivo.
O Rock Gótico surgiu no começo dos anos 80 como um dos afluentes do movimento Pós-Punk, que possui como referência-mor o Joy Division. Entende-se que o primeiro registro do que se conhece hoje como Rock Gótico é o single Bela Lugosi’s Dead, lançado em 1979 pelo Bauhaus. Conduzido em um ritmo leve de Bossa Nova, a música em questão trazia como nunca antes havia sido feito uma atmosfera sombria, obscura e introspectiva, moldurada pela levada destacada do contrabaixo, pelas guitarras entupidas de efeitos e pelos vocais graves e ecoados de Peter Murphy. Outras bandas oriundas do Pós-Punk como The Cure e Siouxsie And The Banshees trouxeram, cada um ao seu próprio estilo, mais contribuições para que o Rock Gótico se firmasse como um estilo independente e emancipado.
A bateria se apresenta seca e unidirecional. O contrabaixo ganha posição de destaque e efeitos de guitarras, como chorus e flanger, o que lhe confere o tradicional timbre úmido e assustador do estilo. As guitarras, por sua vez, criam na mente do ouvinte um ambiente ao mesmo tempo introspectivo e perturbador, graças aos arranjos minimalistas criados em tons menores e os efeitos. Os vocais ou seguem a linha grave de Ian Curtis ou desesperados como os de Robert Smith. Se for uma cantora, Siouxsie Sioux se torna a principal referência. Com o passar do tempo o próprio Rock Gótico foi agregando novos elementos, principalmente eletrônicos. As letras abordam temas românticos, pessoais, existenciais e melancólicos, fortemente influenciadas pela literatura gótica. Mas, para quem vê o estilo de fora, o que mais chama a atenção no estilo é o visual sombrio e perturbador, com figurino predominantemente negro, cortes de cabelo nada convencionais e maquiagem com forte uso de sombras e bases pálidas.
Já o Metal Gótico não foi criado tendo como inspiração o Rock Gótico. Na verdade, o pai do Metal Gótico é o Doom Metal. De modo raso, podemos entender o Metal Gótico como um Doom Metal orquestrado. O Death/Doom surgido no fim dos anos 90 foi ganhando contornos mais melódicos e românticos, naquilo que se traduziu em forma de teclados e vocais líricos femininos nos arranjos das músicas. A alternância destes vocais femininos com os típicos guturais do Death/Doom, junto às letras românticas, levou o Metal Gótico a ser conhecido como metal “A Bela e a Fera”. O Celtic Frost já praticava algo parecido em seus trabalhos oitentistas, especialmente no álbum Into The Pandemonium (1987). Mas foi com Gothic (1991), o segundo álbum do Paradise Lost, que o Metal Gótico passou a ser compreendido como um novo estilo, trazendo pela primeira vez em destaque os elementos que fazem o estilo ser o que é.
A confusão pode ser exponencializada se considerarmos que algumas bandas que foram referência para o Metal Gótico nos anos 90 migraram justamente para o Rock Gótico em alguma fase de suas carreiras. O exemplo mais latente é o do próprio Paradise Lost. A banda de Nick Holmes e Gregor Mackintosh que ajudou a fundar o Death/Doom e o Metal Gótico sempre foi inquieta e nunca fez um álbum parecido com o outro. Após tornar aos poucos seu som mais palatável e comercial, o Paradise Lost atingiu em One Second (1997) a sonoridade do Rock Gótico, que foi ainda mais fortemente explorada em Host (1999), com elementos eletrônicos, guitarras deformadas em efeitos sintetizados e vocais limpos e graves. Foi a partir de Believe In Nothing que a banda aos poucos foi retornando ao peso que ficou abandonado nos primeiros trabalhos do grupo. My Dying Bride teve uma leve guinada para o eletrônico no impronunciável 34.788… Complete (1998). Theatre Of Tragedy se bandeou criminosamente para o Rock Gótico/Eletrônico a partir de Musique (2000). Todas estas bandas retornaram para o velho Heavy Metal depois.
Por outro lado, é difícil imaginar uma banda de Rock Gótico que tenha experimentado o estilo metálico de mesmo nome. O Killing Joke acrescentou bastante peso ao seu som durante sua carreira, apesar de esta banda nunca ter sido associada fortemente ao Rock Gótico. É notório que bandas como The Sisters Of Mercy, Fields Of Nephilim e os gigantes do Depeche Mode, que agrega muitos elementos da música gótica em seu som, influenciaram bandas não só de Doom Metal, como também de outras searas do Rock Pesado. Por exemplo, de onde você acha que o Kreator tirou inspiração para compor e gravar Endorama (1999)?
Finalmente, bandas como Nightwish, Epica e similares não tocam Metal Gótico. Essas bandas fazem Metal Sinfônico, que flerta com outros gêneros de Metal como Power Metal ou Death Metal melódico.
“Ah, mas pra que tanto rótulo?”
Sim, de uns tempos para cá a quantidade de rótulos criados beira o absurdo. Mas os rótulos tradicionais e consolidados ajudam a separar as bandas dentro de seus respectivos movimentos, algo que é muito importante para quem é fã de Rock e Metal e deseja se aprofundar cada vez mais no estilo.
Portanto, o Metal Gótico não tem nada, sequer historicamente, sequer musicalmente, com o Rock Gótico. É tanto que a própria comunidade gótica não considera o Metal Gótico como parte integrante de sua cultura. O peso das guitarras do Metal Gótico não conversa com os efeitos de delay e flanger do Rock Gótico. O baixo quase escondido do Metal Gótico faz vergonha ao baixo vigoroso e líder do Rock Gótico. A bateria lenta do Metal Gótico não lembra os ritmos acelerados e “punk” do Rock Gótico. Mas o melhor de tudo é que ambos os estilos são riquíssimos em musicalidade. Ouça ambos.
Ah, perguntar não arranca pedaço: algum louco nesta Terra confunde Deathrock com Death Metal? Eu respondo: sim. Mas isso fica para uma próxima matéria.