Os mais felizes acasos e coincidências da vida são alguns dos mais importantes elementos que fazem-na valer a pena ser vivida. Para o último mês de agosto este redator havia se planejado para publicar um texto rememorando os 25 anos do lançamento de Mandylion na data do aniversário deste, dia 22. Entretanto, por problemas que fugiram do controle deste que vos fala, tal publicação não se concretizou. Mas eis o The Gathering surge como destaque da vez aqui no Roadie Metal Cronologia e, através de seu sistema semi-aleatório de distribuição de álbuns para os redatores do site, fui contemplado com a oportunidade de dissertar exatamente sobre Mandylion e de poder reparar minha falta em agosto. Não é segredo para ninguém que me conhece que Mandylion é para mim uma das perfeições do Heavy Metal e que Anneke van Giersbergen é minha cantora preferida do estilo. Basta ou quer mais?
Se bem que, querendo você ou não, direi mais. Afinal, estou escrevendo este artigo é para isto mesmo. Pode passar adiante.
O The Gathering fora uma das primeiras bandas a embelezar com camas de teclados, melodias acessíveis e vocais femininos líricos o outrora podre e casca-grossa Death/Doom. Sempre se destacando como uma banda inquieta musicalmente, o The Gathering já ensaiou uma mudança de sonoridade entre o debut …Always e o seu sucessor, Almost A Dance, sendo este último um aviso de que as coisas seriam mais ousadas e maravilhosas no vindouro terceiro registro, apesar do irritante cantor Niiels Duffhue. Para tanto, a melhor decisão que a banda tomou foi chutá-lo para fora. A vocalista Martine van Loon também não permaneceu. René Rutten e companhia resolveram então abrir mão completamente de vocais masculinos e trouxeram para a banda ELA: Anna Maria “Anneke” van Gierrsbergen, egressa do duo Jazz/Folk Bad Breath.
Com Anneke, René Rutten e Jelmer Wiersma (guitarras), Frank Boeijen (teclados), Hugo Princen Geerligs (contrabaixo) e Hans Rutten (bateria), o The Gathering entrou em junho de 1995 no Woodhouse Studios, na cidade alemã de Hagen, e de lá saiu com Mandylion, lançado oficialmente no dia 22 de agosto de 1995 via Century Media Records. Com este terceiro registro, mesmo ainda buscando sua sonoridade ideal (fato este que se comprovaria nos álbuns seguintes), o sexteto holandês alcançou o mais alto nível de inspiração musical de sua discografia. Não somente pela versatilidade e técnica de Anneke, mas também pelas composições originais e atmosferas únicas que somente um músico como René Rutten poderia criar. A atmosfera de Mandylion é imponente, mas ao mesmo tempo mansa, como se o ouvinte pudesse contemplar as paisagens do mundo de uma altíssima e nevoenta montanha, ora sob clima ameno, ora sob tempestade, e de lá pudesse ao mesmo tempo refletir consigo próprio sobre os sentimentos da vida.
O álbum trata logo de amarrar o ouvinte numa cadeira nesta montanha com a maravilhosa e clássica Strange Machines e seus riffs e bases de guitarra emoldurados em camas de teclado em chorus e strings. Além disso, esta é música que ostenta em si o feito de ter revelado ao mundo a voz estonteante de Anneke van Giersbergen. A atmosférica, negra e inebriante Eléanor trata de fazer cair a noite no ambiente e se deixar penetrar em sua paisagem sonora é um ato de coragem, pois na verdade este recinto se transforma num transporte rumo ao além e ao desconhecido no âmago de sua mente. A dupla In Motion #1/Leaves parecem se complementar, pois o clima de valsa triste da primeira combina com o ritmo fúnebre da segunda, na qual Anneke mais uma vez surpreende e usa e abusa de escalas árabes e de melismas em sua linha vocal.
Os acordes dissonantes na base de René Rutten são os destaques de Fear The Sea, tanto nas estrofes lentas quanto na parte mais frenética que junta refrão e seção instrumental. A faixa-título é um instrumental étnico, quase uma World Music “deadcandanceana”, que precede a viagem de dez minutos chamada Sand And Mercury e sua perfeita simbiose entre trechos pesados, passagens quebradas e atmosferas etéreas (e com direito a uma gravação da voz de J.R.R. Tolkien, ele mesmo, recitando um trecho de uma obra de Simone de Beauvoir)! O álbum se encerra com In Motion #2, que chega a ser ainda mais marcante que sua irmã que habita a primeira metade do álbum e na qual Anneke pratica uma das mais perfeitas performances de sua carreira. O fade-out em seu final, e consequentemente no do álbum, parece nos trazer de volta à realidade após um passeio por um universo paralelo cheio de diferentes sensações e visões.
A produção de Mandylion, comandada por Waldemar Sorychta e por Siggi Bemm, não é exatamente cristalina. Aliás, a sonoridade em geral é áspera. Mas a maneira como ela foi tratada e lapidada acabou se tornando uma marca registrada da banda naquele período de sua existência e acabou por balancear perfeitamente as guitarras, teclados, cozinha e vocais sem permitir que ninguém encobrisse ninguém. Comercialmente, a altíssima qualidade de Mandylion se refletiu. Com mais de 130 mil cópias vendidas só na Europa, o grupo finalmente alcançou o posto de uma das bandas mais populares do continente naquela época, o que os levaram a partir de então a se apresentarem em alguns dos mais importantes festivais europeus. E se alguém pensava que aquela sonoridade triste do The Gathering obrigava a banda a fazer apresentações mornas ao vivo, descobriu que na realidade era o contrário com todo o carisma e empolgação de Anneke e também dos demais integrantes da banda, que não se furtavam em vestir as primeiras roupas que viam no guarda-roupa.
Respeitando sua principal premissa de não se estagnar musicalmente e de sempre criar aquilo que lhes dessem na telha, o The Gathering foi abandonando o Heavy Metal aos poucos nos anos seguintes até se tornar um dos nomes mais legais do Rock Altenativo/Atmosférico. De toda forma, é Mandylion que se sagrou na mente dos fãs da banda com seu nível de inspiração divino. Lembra daquela montanha que falei em algum parágrafo acima? Pois bem. Nem dá vontade de descer mais de lá. A brisa lá em cima tem o som da voz da Anneke.
MANDYLION – THE GATHERING
Data de lançamento: 22 de agosto de 1995
Gravadora: Century Media
Tracklist:
01. Strange Machines
02. Eléanor
03. In Motion #1
04. Leaves
05. Fear The Sea
06. Mandylion
07. Sand And Mercury
08. In Motion #2
Line-up:
Anneke van Giersbergen – vocais
René Rutten – guitarras, flauta
Jelmer Wiersma – guitarras
Frank Boeijen – teclados
Hugo Prinsen Geerligs – contrabaixo
Hans Rutten – bateria, percussão