Retratar as raízes do estilo “musical” (isso mesmo, com aspas) mais subversivo, sujo, podre e anticomercial da história não é uma tarefa fácil. Há decadas, o Grindcore existe e se difundiu ao redor do mundo graças a nomes como Repulsion, Terrorizer e Napalm Death. Com o passar dos anos, o gênero deu origem a outras vertentes igualmente podres e vis, como o Goregrind, Deathgrind e o Porngrind, entretanto, a sua face original, marcada por composições de curtíssima duração, riffs dissonantes, baixo distorcido, vocais extremamente guturais, caracterizados por urros, grunhidos e rasgados, além de blast beats frenéticos e temas que abordam causas sociais e políticas é a sua forma mais conhecida, indubitavelmente.

Dirigido pelo produtor e diretor Doug Jones (“The Death of Indie Rock”), um entusiasta assumido do gênero e realizado através de financiamento coletivo pela produtora Death by Digital, “Slave to the Grind – A Film About Grindcore” visa dissecar as origens do Grindcore, indo desde o seu nefasto surgimento até sua considerável ascensão, destacando pontos e fatos importantíssimos. Antes de falar do documentário em si, é importante ressaltar que, desde que anunciaram o seu lançamento, há dois anos atrás, esse que vos escreve já havia ficado ansioso para conferir essa empreitada e devido a terrível pandemia do COVID-19, a Death by Digital liberou por tempo limitado o documentário no YouTube. Assim que soube da notícia, corri para o computador para assistir a esse projeto e foi satisfação garantida. Nas próximas linhas pútridas, dissonantes e fanfarrônicas vou discorrer com detalhes a respeito dessa obra.

Repulsion

O filme se inicia em Flint, Michigan (EUA), com depoimentos do vocalista/baixista Scott Carlson (Repulsion, Septik Tank, ex-Cathedral, ex-Church of Misery, ex-Death). Logo de cara, o documentário expõe o surgimento do Repulsion, um dos nomes pioneiros do grindcore. Todo o impacto que “Horrified”, o lendário único full-length lançado em 1989, pelo selo Necrosis Records é relatado nos primeiros minutos. É muito interessante também vermos registros de Matt Olivo (guitarra) e de Carlson durante o início do Death, mais precisamente na época das demo tapes de 1985 e 1986. Certamente é um pedaço e tanto de história!

Napalm Death

Na sequência, o documentário migra para Birmingham, Inglaterra (UK) para abordar o surgimento daquele que é um dos nomes mais conhecidos e renomados desse cenário, quiçá o maior: Napalm Death. Retratando o grupo desde suas raízes inicias, de quando a banda nutria influências de nomes como Crass, Killing Joke e Swans, temos depoimentos muito bons dos ex-integrantes Justin Broadrick (Godflesh, Jesu e tantos outros) e Bill Steer (Carcass), além do baixista Shane Embury (Brujeria, Lock Up, Venomous Concept e muitos outros) e do vocalista Mark “Barney” Greenway (ex-Extreme Noise Terror, ex-Benediction).

Novamente, temos uma bela abordagem do impacto monstruoso que as obras inicias da banda tiveram na cena e claro, falo dos seminais dois primeiros álbuns do grupo, “Scum” (1987) e “From Enslavement to Obliteration” (1988), ambos lançados pelo selo Earache Records, selo que cada vez mais se especializou em música extrema. Outro ponto muito interessante ressaltado num determinado trecho é que, segundo “Barney” e Shane, o termo Grindcore surgiu através do ex-baterista da banda Mick Harris (ex-Defecation) e não da mídia ou outros meios, como muitos pensam.

É bem interessante também que, durante o trecho que abordam sobre o ND, são mencionados outros nomes importantes do underground, como o Siege e o Extreme Noise Terror, que certamente influenciaram e muito o lendário grupo de Birmingham. Aliás, é importante relembrar que, durante os anos noventa, ND e ENT trocaram de vocalistas. Phil Vane ficou um tempo na linha de frente do ND e “Barney” chegou a gravar os vocais de “Damage 381” (1997) ao lado de Dean Jones.

Terrorizer

Mais adiante no documentário, nos aventuramos pelo surgimento de outro notório ícone do Grind: o Terrorizer (EUA). “World Downfall” (1989), o primeiro full-length da banda, lançado pela Earache Records e que teve como engenheiro de som o hoje renomado Scott Burns (Sepultura, Cannibal Corpse, Death, Obituary e muitos outros), já nasceu um clássico da música extrema. Contando com o guitarrista Jesse Pintado (1969 – 2006) (ex-Napalm Death, ex-Brujeria, Resistant Culture, ex-Lock Up), o baterista Pete “Commando” Sandoval (ex-Morbid Angel) e o vocalista Oscar Garcia (Nausea, Terrorizer LA), além de contar com o baixista David Vincent (Morbid Angel, I Am Morbid, Vltimas) como produtor e músico convidado, a obra influenciou e ainda influencia muitos mesmo após todos esses anos e, certamente, é um dos melhores registros do estilo. Vale ressaltar também que esse disco foi um dos marcos do Deathgrind, onde a sonoridade evoca mais influências de Death Metal.

No documentário, são entrevistados Sandoval e Garcia e lá, é mencionado que, atualmente existem dois Terrorizer, o que tem Sandoval como único integrante remanescente e o Terrorizer LA, com Garcia na linha de frente. A técnica admirável de Sandoval é explanada por um dos entrevistados, que menciona que o músico usa os pedais como se estivesse apagando um cigarro, o que é, no mínimo, bem curioso. Também é enfatizada a contribuição de Jesse Pintado em “World Downfall”, contribuição realmente histórica e que justifica muito bem o fato do finado guitarrista ser conhecido por muitos como “The Grindfather”, o “Padrinho do Grind”. Aliás, é bem bacana que, em um determinado trecho, é citado que Jesse tentou reunir os integrantes originais do Terrorizer no início dos anos 2000, ainda que sem sucesso.

Brutal Truth

Outra banda que também ganhou bastante espaço no documentário é o Brutal Truth (EUA), projeto iniciado no início dos anos noventa pelo baixista Dan Lilker (Nuclear Assault, Venomous Concept, ex-S.O.D., ex-Anthrax) e que infelizmente encerrou as atividades em 2014. Discos como “Extreme Conditions Demand Extreme Responses” (1992), “Need to Control” (1994) e “Sounds of the Animal Kingdom” (1997) se tornaram verdadeiros clássicos do Grind. Em “Slaves to the Grind”, temos depoimentos, além de Lilker, do ex-baterista Rich Hoak (Old Head e Total Fucking Destruction), do ex-guitarrista Erik Burke (Nuclear Assault, Blurring, Inmania, Sulaco) e do ex-vocalista Kevin Sharp (Lock Up, Venomous Concept). É muito interessante ver Dan Lilker falando sobre a escolha de Erik Burke para substituir o guitarrista original, Brent “Gurn” McCarty (John Connelly Theory).

Fuck the Facts

Além disso, “Slave to the Grind” tem uma pequena passagem abordando o icônico festival Obscene Extreme Festival, fundado em Trutnov, na Tchéquia. O fest se tornou parada obrigatória para fãs de subgêneros como Crust Punk, Grindcore e Death Metal e é uma notável referência dentro do seu segmento. Evidentemente, não faltam trechos bizarros em algumas passagens, como podem imaginar.

Cretin

Um ponto bem interessante também é que o documentário tem uma passagem bacana, ainda que simples, em bandas com mulheres na formação, como o Fuck the Facts (CA) e também depoimentos muito bons com a vocalista/guitarrista Marissa Martinez, do Cretin (EUA). Marissa é uma trans de muita atitude e é muito interessante ver ela mencionando que suas principais influências vocais são Scott Carlson e Mark “Barney” Greenway.

Nasum

Outra banda que é lembrada com louvor no documentário é o grande Nasum (SUE), grupo que foi responsável por influenciar uma legião de bandas que surgiram depois, graças a discos monumentais que produziram, como “Inhale/Exhale” (1998) e “Human 2.0” (2000). Vitimado por um Tsunami, na Tailândia, Mieszko Talarczyk (1974 – 2004) sempre será lembrado como uma das grandes mentes por detrás do Grindcore e seu legado é respeitado em “Slave to the Grind”. Durante uma passagem, ainda temos alguns depoimentos do vocalista Keijo Niinimaa (Rotten Sound, Morbid Evils, Goatburner e outros), músico que assumiu a linha de frente do Nasum durante alguns shows especiais em 2012.

Agathocles
Carcass

Além de tudo isso, o documentário ainda expõe brevemente a cena japonesa, traz depoimentos de outras pessoas importantes para o cenário, como Digby Pearson, da Earache Records, dos integrantes do Agathocles (BEL) e ainda há espaço para uma passagem breve sobre Goregrind, onde obviamente retratam o Carcass como os pioneiros dessa vertente sanguinolenta e visceral.

Infelizmente, o documentário peca por trazer um espaço relativamente curto para artistas como o Carcass, por não ter qualquer menção ao Brujeria, grupo que possui em sua discografia o clássico monstruoso “Matando Güeros” (1993), que é uma obra prima do Grind e principalmente por dar um amplo espaço ao Anal Cunt (EUA), banda de cunho extremamente duvidoso e que tinha na linha de frente o desprezível Seth Putnam (1968 – 2011). Ainda que o AxCx seja considerada uma banda importante e influente no gênero, particularmente, boicoto todo e qualquer artista com a postura que Putnam tinha.

 No mais, só me resta chover todos os elogíveis possíveis para “Slave to the Grind – A Film About Grindcore”. É uma obra que cumpre piamente o que se propõe a fazer, que é garimpar toda a trajetória do grindcore e explicar o gênero para as massas, tanto para aqueles que são familiarizados com o subgênero e o amam, como para aqueles que não fazem a menor ideia do que seja um blast beat. Como disse acima, não é uma obra perfeita, tem os seus defeitos, entretanto isso não tira o seu brilho. Trata-se de um entretenimento obrigatório a todos os Grind maniacs e aficionados por barulheira feia, suja e desgovernada.

In Grind We Trüst!