Resenha: Camel – Mirage (1974)

O Camel faz parte de um importante grupo de bandas inglesas de Prog Rock que compõem uma “segunda divisão” do estilo em termos de reconhecimento e popularidade. Por um motivo ou outro, essas bandas são sempre ofuscadas por nomes consagradíssimos como King Crimson, Yes, Genesis, Jethro Tull e Emerson, Lake & Palmer. Todavia, não se pode ignorar jamais o trabalho e o legado do Camel e a musicalidade absurda de seu líder e guitarrista, Andrew Latimer. O ápice de exposição desta musicalidade veio já no segundo álbum do grupo, Mirage (1974), o assunto deste ensaio crítico.

Além de Latimer, o Camel era composto naquela época por outro importante membro da história do Camel, o tecladista Peter Bardens, pelo baixista Doug Ferguson e pelo baterista Andy Ward. Esta mesma formação gravara em 1972 e lançara em 1973 o debut da banda, autointitulado, que já mostrava um Camel de composições tocantes e técnicas, ainda com fortes elementos de Rock Psicodélico, mas deixando a mostra que ainda estavam em busca de um maior refinamento e de uma identidade mais própria. Camel foi um fracasso de vendas e a gravadora MCA resolveu não apostar mais na banda, que se mudou de mala e cuia para a Deram Records, uma subsidiária da major Decca Records.

As gravações do sucessor de Camel aconteceram em novembro de 1973 e foram divididas entre os estúdios Island, Decca e AIR, todos em Londres. O resultado destas gravações viu a luz do mundo no primeiro dia de março de 1974. Batizado de Mirage, o conteúdo musical do segundo álbum do Camel prova por A mais B que não houve somente uma evolução em relação ao debut. O nível de inspiração, de ousadia e de técnica alcançado em Mirage foi tamanho que o tempo fez o favor de posicioná-lo como um dos melhores álbuns de Rock Progressivo da história.

Freefall, uma composição de Peter Bardens cantada por ele próprio, dá início aos trabalhos com um ritmo sincopado de bumbo, baixo e teclados acompanhados por contratempos de guitarra que prepara o ouvinte para o suprassumo sonoro que virá adiante. Como sempre, o fabuloso trabalho de guitarra de Andrew Latimer se destaca como protagonista, o que faz o Camel se diferenciar das demais bandas de Prog da mesma época por jamais esquecer que era uma banda de ROCK progressivo. Após uma abertura frenética, a instrumental Supertwister acalma os ânimos como um afago na mente. Esta faixa inaugura também o reconhecimento de Andrew Latimer como um exímio flautista. Seus solos no instrumento elevam a alma do ouvinte a um plano paralelo de conforto, reforçado pelo ritmo lento da bateria e as linhas hipnóticas do baixo de Doug Ferguson. A erudição, a beleza e a complexidade desta faixa nos remetem ao Prog Rock italiano.

Um arranjo sombrio composto pela guitarra com forte tremolo e um timbre fantasmagórico de teclado dá início a The White Rider, que se segue ao longo dos próximos 9 minutos com várias mudanças de andamento e de atmosferas, onde trechos de calmaria e bonança se alternam com outros mais rápidos e urgentes, sem em momento algum deixar de prezar o virtuosismo de cada integrante, especialmente Andrew Latimer e sua guitarrada sempre tocante. Eis aqui um belo exemplo de como as habilidades individuais de cada instrumentista se unem com o único mister de elaborar um perfeito e eficiente conjunto de arranjos. Não poderia ser para menos, tendo em vista que a letra de The White Rider homenageia ninguém menos que Gandalf, O Branco, outrora o Cinzento, o mais sábio e poderoso dos magos Istari do legendário tolkieano. Mais um instrumental tem início, Earthrise, e é aqui que a banda explora seu lado mais frenético. Ensanduichado entre dois trechos calmos e de melodias bonitas, uma enorme seção rápida testa o condicionamento físico de Andy Ward em uma levada insanamente groovada e os tendões das mãos de Andrew Latimer e de Doug Ferguson, que performam aqui acordes alternados rapidamente e linhas de baixo pesadas. Peter Bardens tem aqui a missão de rechear tamanha insanidade com solos e arranjos de timbres variados.

Mas o melhor ficou para o final de Mirage. Lady Fantasy, a melhor e mais bela composição de Rock Progressivo de todos os tempos na opinião deste escriba. 12 minutos de pura inspiração divina, virtuosismo, perfeita alternância de ritmos, arranjos e atmosferas, vocais precisos e solos tocantes. Simplesmente ouça e se sinta caminhando calmamente ao redor de algum lago no outono, imaginando a sua “lady fantasy” particular enquanto ela surge deslumbrante como uma miragem nas nuvens igual raios de sol que teimam em iluminar a Terra num dia nublado.

38 minutos. Nem mais, nem menos. Tudo que foi apresentado entrou nos arranjos de forma essencial e não ficou faltando nada por fora. Os integrantes do Camel também não precisaram compor gigantes megalomaníacos de mais de 20 minutos para provar que são capazes musicalmente. A produção, chefiada por David Hitchcock (que possui em seu currículo Foxtrot, do Genesis, além de trabalhos com Marillion, Curved Air e uma longa parceria com o Caravan) com apoio técnico de Howard Kilgour e Bill Price (este último, ironicamente, fez fama produzindo clássicos do Punk Rock, estilo que “matou” a popularidade do Rock Progressivo), é uma das melhores do período. Todos os instrumentos ficaram precisamente bem encaixados e nítidos aos ouvidos. O baixo de Ferguson é explosivo, os teclados de Bardens rebocam bem os buracos e se destacam quando preciso com solos ou harmonias e a guitarra de Latimer tem todo o espaço do mundo para brilhar. E nem preciso gastar meu vernáculo falando acerca da icônica capa, uma referência diretíssima e sem-vergonha à famosa marca de cigarros que tem o nome da banda.

O Camel continua na ativa até hoje e construiu ao longo de quase cinquenta anos uma discografia riquíssima e variada que vale muito a pena ser conhecida. O nível de excelência é altíssimo em alguns deles e em outros a audição é um pouco mais burocrática, o que não significa que exista um álbum do Camel ruim. Mas Mirage tem aquele sentimento a mais que o posiciona acima de todos os outros. Talvez seja uma benção especial de Gandalf.

Camel – Mirage
Data de lançamento: 01 de março de 1974
Gravadora: Deram Records

Tracklist:
01. Freefall
02. Supertwister
03. The White Rider (I – Nimrodel, II – The Procession, III – The White Rider)
04. Earthrise
05. Lady Fantasy (I – Encounter, II – Smiles For You, III – Lady Fantasy)

Line-up:
Andrew Latimer – guitarras, flautas, vocais em “The White Rider” e em “Lady Fantasy”
Peter Bardens – teclados, sintetizadores, vocais em “Freefall” e em “Lady Fantasy”
Doug Ferguson – contrabaixo
Andy Ward – bateria, percussão

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