Era 1986. Eu, frequentador assíduo de bancas de revistas, comprei um livro cuja capa trazia a ilustração de um luxuoso carro vermelho. O nome? Bem, esse é um detalhe interessante, pois o título do livro era um nome feminino: “Christine”. Eu viajava muito à trabalho e as 550 páginas poderiam ajudar a passar meu tempo, mas não rendeu tanto quanto eu esperava. Terminei logo a leitura porque eu não conseguia largar a coisa. No ônibus, no intervalo de almoço, no banheiro, na hora de dormir… A leitura criava imagens cinematográficas claras em minha mente, com cortes rápidos de cenas de suspense e ação. E terror. O terror mais assustador que eu poderia encontrar, eliminando todos os elementos góticos da época clássica do gênero e trazendo tudo para a vida cotidiana. Para o cenário urbano, onde algo tão corriqueiro quanto um carro poderia criar uma espécie de consciência e ter sede de sangue.
Stephen King se tornou o nome chave para mim. Na sequência vieram “O Iluminado”, “Carrie”, “”Zona Morta”, “Tripulação de Esqueletos”, “Sombras da Noite”… e todos ainda estão em minha estante, aumentando o acervo gradativamente à medida que um novo livro é lançado, sendo “Belas Adormecidas” a última aquisição. Ao longo desse período, a popularidade do autor parece apenas aumentar, graças, em parte, às adaptações cinematográficas de sua obra.
Quem acompanha mais regularmente os seus livros, tende a desenvolver alguma intimidade, pois King revela muito de si, de seus pensamentos e sua rotina nos prefácios das edições, indo além de tudo o que já é normalmente detalhado em suas biografias ou nos ensaios em que trata sobre as técnicas de redigir (“Sobre a Escrita”) ou sobre a cultura de terror norte-americana (“Dança Macabra”). Com tanto acesso ao seu dia-a-dia, facilmente se identifica que, além de sua família e seu trabalho, King possui duas outras grandes paixões: o beisebol e o Rock ‘n’ Roll. É sobre esse último que queremos falar.
Já em “Christine” havia uma insistente menção a canções antigas, do começo do Rock´n´Roll nos anos 50, cujo sentido na trama eu não posso revelar, caso alguém ainda não tenha lido o livro, mas davam um sabor especial ao enredo e, mais a frente, conforme os livros iam sendo consumidos, outras citações surgiam. Frases de Bob Dylan parafraseando capítulos, menções a morte de Marc Bolan, do T. Rex, ou às canções do trio Peter, Paul & Mary eram detalhes sazonais que não passavam despercebidos para quem tivesse um pouco mais de conhecimento sobre a música popular. Em alguns livros, porém, as referências deixavam de ser meras citações e se aprofundavam mais no contexto das tramas. Assim foi, por exemplo, com o personagem principal de “Cemitério Maldito”, que era fã de Ramones e repetia sempre o refrão Hey-Ho-Let´s Go!
Também em “A Dança da Morte”, havia o personagem Larry Underwood, que era um músico iniciante, começando a experimentar o sucesso antes dos fatos que dizimaram uma parte da população, mas a melhor de todas as referências estaria no conto “Sabe, eles têm uma orquestra dos diabos”. Nessa estória, um casal se perde na auto-estrada e vão parar em uma cidade chamada Rock´n´Roll Heaven onde, aos poucos, encontram-se com figuras centrais como uma garçonete, o xerife, o prefeito, e, cada uma dessas pessoas parece ser familiar. Não é à toa, pois eles são Janis Joplin, Marvin Gaye, Elvis Presley, Buddy Holly, Jim Morrison e outros ícones já falecidos. Só posso comentar até aqui em respeito a quem ainda não leu, mas é um conto saboroso para os fãs de música.
King já declarou diversas vezes que gosta de escrever ouvindo Hard Rock em alto volume. Metallica, Guns´n´Roses e AC/DC são algumas de suas preferências e foi, exatamente este último, que assumiu a tarefa de fazer a trilha sonora da única – e mal sucedida – experiência do escritor como diretor de cinema: o filme “Comboio do Terror” (“Maximum Overdrive”), de 1986, cuja trilha virou o disco “Who Made Who” dos australianos. Ainda no cinema, a mais recente aparição de uma banda em trilha de um filme baseado em sua obra foi com “Antisocial”, do Anthrax, em uma das cenas de “It – A Coisa”, mas o Anthrax já tem experiência para tanto, pois pelo menos três de suas músicas são baseadas em King: “Among The Living”, inspirada no livro “A Dança da Morte”; “A Skeleton In The Closet”, inspirada no conto “Aluno Inteligente”, e “Misery Loves Company”, baseada em “Louca Obsessão”.
Outras bandas também aproveitaram suas estórias para incrementar suas letras e seria impossível listar tudo, mas destacam-se os Ramones, que devolveram a gentileza de serem citados no livro “Cemitério Maldito”, e fizeram a canção “Pet Sematary” para a trilha do filme baseado no mesmo. O Black Sabbath usou “O Iluminado” para a letra de “The Shinning” e Testament buscou o conto “As Crianças do Milharal” para compor “Disciples of The Watch”. Por fim, o Blind Guardian afastou-se brevemente de Tolkien e foi buscar inspiração no livro “Tommyknockers” para criar duas canções de seu álbum “Tales From The Twilight World”: a própria “Tommyknockers” e sua sequência “Altair-4”.
Por algum tempo, King investiu em uma estação de rádio em Bangor e, por ocasião de um evento festivo da emissora, convidou o Twisted Sister para se apresentar na cidade. Foi o suficiente para que a banda fosse banida do local. King relembra do fato entre risadas, mencionando a forma como Dee Snider colocava toda a plateia para dizer “Eu sou um filho da puta doente”, durante a canção “S.M.F.”. Fatos tão ousados não devem ocorrer com a banda que ele formou junto a outros colegas escritores, a Rock Bottom Remainders, onde toca guitarra. A criação desse conjunto ocorreu de curtição, para participação em um evento, mas, como acontece tanto, a curtição sobrepujou a previsão de parar e eles continuaram. Fazem pequenas turnês nas proximidades de sua região e se divertem. Se o som é bom? Bem, alguém já disse que eles tocam tão bem quanto o Metallica escreve romances….
Stephen King é uma fonte inesgotável de assunto e poderíamos nos estender bem mais, mas por enquanto temos uma prévia satisfatória da interseção que este gênio tem entre o mundo da música e o da literatura de horror. No lado de lá, estamos representados por figuras como Alice Cooper e King Diamond. No lado de cá, por Stephen King.