Um grande artista raramente é grande em apenas uma área. Tampouco é grande em um número muito grande de áreas. Mas o mais comum é que tenha “comorbidades” artísticas, talentos artísticos que circundam seu talento artístico principal ou mais reconhecido. E esse é o caso de Neil Peart, ex-baterista e letrista da banda canadense Rush.

Peart foi autor de inúmeros livros, a maioria relatos de viagem, e mais recentemente também de alguns romances. O livro Ghost Rider foi escrito logo após um período negro na vida do músico. Sua filha morreu em um acidente de carro e, após um ano de intenso sofrimento, ao qual Peart se refere como “um caso de morte devido a um coração partido”, sua esposa faleceu após descobrir um tipo raro e fulminante de câncer.

A contracapa do livro (pelo menos a edição brasileira) vende a obra como sendo a experiência de Neil Peart após estes dois fatos marcantes em sua vida, e como ele conseguiu superar a morte de sua família, a dor, o sofrimento e foi capaz de “voltar” à vida quando sentia que nada mais tinha sentido, nada mais valia a pena. O futuro leitor da obra fica com a impressão de que lerá sobre a vida interna de Peart e o processo de cura mental/emocional/espiritual/física pela qual ele passou para superar esses acontecimentos. Não é exatamente isso. Mas é, de certa forma, isso.

Ghost Rider é um livro longo, uma grande jornada em que Neil Peart apenas, no início, menciona as mortes de sua filha e esposa, para então partir para o que realmente trata de relatar: suas viagens ao longo de mais de um ano pelo Canadá, Alasca, Estados Unidos e México em cima de sua moto, sozinho, observando as paisagens, o céu, os habitantes, sentindo o clima, o passar do tempo, aguentando o luto, tentando superar a perda e tratando de voltar a viver “normalmente”.

Se você espera ler reflexões sobre autossuperação no estilo de livros de autoajuda ou até mesmo de filosofia pessoal, este não é o livro. A sabedoria de Peart está nas entrelinhas, não nas frases explícitas. Ele não trata dos problemas que o afligem refletindo diretamente sobre eles, colocando o dedo na ferida diretamente. A cura vem através do detalhamento que Peart consegue dar às suas viagens e às suas observações do mundo, demonstrando ser uma pessoa extremamente resiliente e ao mesmo tempo sensível e humana.

Se você conhece Neil Peart como baterista, deve saber de seu talento musical. Quando ler seu livro, conhecerá seu talento como escritor, que é igualmente impressionante, ao menos no que diz respeito a este estilo de escrita. São mais de 500 páginas em que o que lemos são descrições de viagens, trecho a trecho, com as observações do que havia para o jantar, quantos carros e caminhões havia na estrada (e como estava o trânsito), como eram os hóspedes de determinado hotel, e assim por diante. E, é claro, como ele se sente em cada um desses momentos.

Intercalando com os relatos de estrada, Peart escreve cartas a amigos, principalmente a Brutus, seu melhor amigo, que durante o período da escrita de Ghost Rider, está na cadeia. Peart lhe escreve com frequência, e mesmo nesse período difícil não perde seu humor (às vezes leve, às vezes negro).

É impressionante como em um livro em que não há exatamente um enredo claro, a leitura não se torna monótona. Neil Peart foi um exímio escritor que conseguia manter o leitor interessado apenas em sua existência, mesmo em seus momentos mais vazios, mesmo quando a vida parece não ter nada a oferecer.

Seja você um fã do Rush ou não, se for um apreciador de literatura certamente reconhecerá neste livro um grande talento, uma grande história – mesmo que escondida – e uma grande lição de vida que, sem tentar ensinar nada a ninguém, tem o poder de ensinar muito mais do que podemos aprender em uma única leitura.