Uma das maiores expressões do Metal brasileiro aconteceu em Belo Horizonte, Minas Gerais.

Daqui surgiram bandas de renome internacional como o Sepultura que tem uma fama bem solidificada no cenário mundial, mas com mesma qualidade ou (mais?), de um celeiro de possibilidades artísticas que outras bandas também fizeram, como Mutilator, Sarcófago, Holocausto, Witchammer, Overdose, Kamikase, etc. Elas são tão respeitadas quanto, pois sabemos que o que faltou para chegarem onde estão é antes de tudo, “falta de sorte”. Não de competência. Vê-se hoje a impressionante expressão mundial que as músicas que eles fizeram há mais de 30 anos, até hoje.

Imagina ser influenciado e se expressar numa época em que era muito difícil furar o bloqueio de informações que mal chegavam do Rio de Janeiro ou São Paulo, ainda que limitado e arcaico pra eles, quanto ao que vinha da Europa e dos Estados Unidos. O resto do país então, nem imagino.

Mas é fato de que algumas coisas nunca são reveladas e um dia desses meu amigo Ricardo veio dizer: “Viviamos o mesmo sentimento que os rapazes da nossa idade que moravam nos Estados Unidos como Metallica, Slayer… A diferença eram os recursos” Foi então que pensei o quão rico seria entrevistá-lo. Até porque ele não é um ilustre desconhecido. Na verdade é membro de uma famosa lenda do Rock mineiro.

O Ricardo é ex baixista da antiga banda mineira de Thrash Metal Mutilator, que teve seu começo junto ao Sepultura mas infelizmente por acasos diversos, tiveram que encerrá-la. Encontrei o Ricardo para um bate papo legal, que deu origem a essa entrevista gravada que transcrevi pra cá. Espero que gostem!

Roadie Metal – Bom Ricardo, a primeira pergunta que eu vou te fazer é: Como foram as primeiras influências do Heavy Metal em MG nos anos 80?

Ricardo – Naquela época as coisas no Brasil eram muito difíceis de chegar, tudo muito carente mesmo. Falando da minha pessoa, eu e meu irmão (Rodrigo) sempre fomos unidos e gostávamos das mesmas coisas. Fomos ter contato com o Rock e Metal no Brasil em 1982, em programas de TV como o Super Special na TV Bandeirantes. Eram clipes como do Peter Frampton, Alice Cooper de onde surgiu o interesse, e influências de um primo que ouvia Elvis Presley, Beatles. Eu e Rodrigo por volta de 1983 conhecemos uma loja em BH chamada COTEC, que ficava na escola de engenharia da UFMG na Praça da Estação, e começamos a frequentá-la e comprar discos. Assim surgiram também as amizades.

Roadie Metal – Me diga uma coisa, o Metal na época era modinha, era uma coisa de “tribo” ou mais misturado? Como chegava esse estilo musical até vocês ?

Ricardo – As informações aqui para nós eram travadas pela mídia. Mas a ascensão do Heavy Metal no Brasil, que eu considero como um divisor de águas foi a vinda do Kiss ao Brasil com a turnê do Creatures of The Night, comemorando 10 anos de carreira.

Roadie Metal – As vezes me vem à cabeça a questão do Heavy Metal na época com uma forte alusão ao Glam (maquiado). O que você acha disso?

Ricardo – O Kiss não. O Kiss era rock n roll visceral mesmo. Embora teve uma fase glam bem depois. O Kiss era a primeira banda de influência de todo mundo do Thrash. No Brasil não era diferente. Era a principal influência do  pessoal que ouvia Heavy Metal no Brasil.

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Roadie Metal – Voltando à questão da influência e amizades na loja de discos COTEC, como era a aquisição de discos e posteriormente, de instrumentos musicais e montar uma banda nessa época?

Ricardo – Era muito difícil. Em termos de disco, naquela época tínhamos acesso à grandes discos como AC DC, Black Sabbath, Scorpions e Slade.  Mas me marcou muito quando um dia fui comprar o primeiro álbum do Iron Maiden no Brasil, que foi o The Number of The Beast. Achávamos que era o primeiro disco, e que Bruce Dickinson era o primeiro vocalista. Depois que lançaram o Killers e Iron Maiden, que descobrimos a existência de Paul D´ianno. E ali já tinhamos o interesse em ter banda, em montar a banda. Já éramos amigos dos meninos de Santa Tereza do Sepultura; mas aqui mal tinha instrumentos musicais. Só tinha guitarra Tonante, e pedal era só o Sound. Quando começou a melhorar os instrumentos foi com a chegada da Giannini

Roadie Metal – Como era formar uma banda então com instrumentos mais simples, com menos recursos e como foi entrar no mercado musical mineiro.

Ricardo – Era extremamente precário. O Sepultura começou um pouco antes de nós. Frequentávamos os ensaios na casa do Max e do Igor, e ensaiávamos também. O Igor só tinha um prato, uma caixa e um tomtom. O Igor foi só ter um kit de bateria depois de lançar o Bestial Devastation. O baixo que eu usava para ensaiar a minha banda era emprestado do Paulo do Sepultura.  Isso em 1984. A bateria do meu irmão também era emprestada. Fui só ter meu instrumento muito tempo depois.

Roadie Metal – E a partir daí? Quando foi o “estouro da boiada”?

Ricardo – Ficamos sabendo do Rock in Rio 1985, e ficamos todos entusiasmados. Ai na TV Globo a semana inteira aguardando anunciar a bandas que iam tocar. Quando ficamos sabendo das bandas que iam tocar, passaram pedacinhos dos clipes das bandas na TV e ficamos todos impressionados. Os ingressos eram vendidos aqui em BH no Banco do Brasil, e no stand de vendas tinha um monte de fotos dos caras num saguão enorme. Pensávamos: Porra, esses caras vão vir ao Brasil?

Roadie Metal – Como foi o Rock in Rio 85 para você?

Ricardo – Fomos eu, meu irmão e o Auder (Audergang), eu estudava e meu irmão era boy na época. No Brasil havia saído o primeiro volume do SP METAL (que foi a primeira coletânea de metal no Brasil) Volume 1 com Virus, Centurias, Salário Minimo e Avenger; e também a SPLIT do Dorsal Atlantica e Metalmorphose. São Paulo invadiu o Rock in Rio. Uma coisa absurda. A mídia não tinha noção. A banda Salário Minimo tinha uma música que íamos cantando nos ônibus: “É um grito que sai pela minha cabeça,…no meu coração…é um grito que sai pela veia e não cessa” – (ouça aqui). Ai todo mundo chegou cantando essa música. Não vou lembrar a letra toda. Ai a mídia começou a reparar: Nossa, existe esse “trem” do Heavy Metal no Brasil. O Maiden tava estourado no mundo inteiro com Powerslave, o Queen com The Works, o ACDC com Flick of the Switch, Scorpions vendendo discos como água com Still loving you. O Rock in Rio na verdade foi um grande festival de Metal

Roadie Metal- Quem você acha que foi o grande “divulgador” do Metal no Brasil nessa época sem internet? Eram os meios de comunicação de TV, as gravadoras e distribuidoras ou existia uma outra forma de divulgação?

Ricardo – Com certeza foram primeiramente os shows do Van Halen, do Kiss; em 82/83 e posteriormente o Rock in Rio escancarou. Depois do Rock in Rio, todos queriam ter uma banda. A gente não tinha acesso antes disso. Ai começaram a surgir as revistas com posters (110x80cm) semanais da SOM TRÊS, com muita informação. A EMI ODEON lançou uma série chamada Heavy Metal ATACK . Teve também as revista de metal; a BIZZ; a revista METAL do Rio. Em BH, a COGUMELO começou a investir em Heavy Metal, e em São Paulo a WOODSTOCK , do Walcir fez o mesmo. O Walcir teve na Inglaterra quando as principais bandas de metal lançavam seus discos, e ele que trouxe isso para o Brasil. A Pati e o João, proprietários da Cogumelo voltaram para este nicho de mercado. Iamos para o ICBEU na Rua da Bahia, para vermos os vídeo clipes. As mostras se chamavam: Heavy Rock I, Heavy Rock II, etc…Ele divulgava nas lojas de disco, tipo a Cambio Negro da galeria do rock, e a loja do Claude. Mas esses vídeos passavam no video clube ICBEU aos domingos. Muitas bandas foram idealizadas e montadas ali no ICBEU. Nessa época tinha também um lugar chamado Metalica Space Bar, íamos ouvir som e tomar uma cerveja. Mas era mais um dos points de BH. O pessoal do Chackal, Holocausto, todos se encontravam lá etc. E depois expandiu para o Pop Pastel, Kid Batata, Bebs na Savassi (bairro). Domingo íamos também para a Cidade Nova (bairro). Foi então que todos os clássicos de Metallica, Anthrax, Exciter, de tudo que tinha do Thrash Metal para nós começou a chegar em TEMPO REAL.

“O ROCK IN RIO NA VERDADE FOI UM GRANDE FESTIVAL DE METAL”

 

Roadie Metal – Foi então ai que surgiu de fato o Mutilator né? Me fala como surgiu a idéia da banda.

Ricardo – Desde que eu e meu irmão ficamos interessamos por rock e Heavy Metal, queriamos montar uma banda. E víamos que haviam outros caras com o mesmo interesse. Formamos eu, Rodrigo, o Cleber, e o falecido Magoo. Até que achamos um vocal chamado Claudinho. Já havíamos composto o instrumental da “Evil Conspiracy. Nos primórdios de Mutilator e Sepultura éramos amigos e pintou o convite de juntar a aparelhagem e ensaiar juntos por 6, 7 anos. O Mutilator era mais parecido com Hellhammer, mais sujo. Ai o Silvio que era roadie do Sepultura, tornou-se nosso vocalista. Depois veio a composição “Believe of hell”. A Cogumelo Records já havia lançado a Bestial Devastation (Split), do Sepultura com Overdose. 1000 copias que esgotou em 3 dias. Então a Cogumelo Recordes resolver lançar o Warfare Noise” 1 foi então o primeiro trabalho do Mutilator. Holocausto, Chackal e Sarcófago. Recebíamos uma média de 100 cartas por semana e também trocávamos correspondência com o pessoal do Kreator, do Destruction, etc.

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Roadie Metal – Que bacana! Como as pessoas sabiam seu endereço, e vice versa?

Ricardo – Saia nos vinis, os endereços de contato. Colocávamos o endereço com o titulo: “Central Nuclear Box” Que era nada mais nada menos que o endereço da minha casa. Recebíamos muitas cartas dos Fanzines internacionais também. E isso tinha muita popularidade lá fora e mandávamos cartas também.

Roadie Metal – E quem mandava os seus materiais pra fora?

Ricardo – A gente mesmo. Fazíamos contato com o pessoal de Fanzine, demorava pra caramba. O povo mandava carta com dólar….Na raça mesmo. Demorava para chegar, mas a gente trocava. Então com o sucesso da Warfare Noise I, a Cogumelo resolveu lançar o álbum de cada banda do projeto. O do Mutilator foi o álbum Immortal Force que acabou de completar 30 anos, e tá sendo comemorado no mundo inteiro. O Warfare Noise e Immortal Force, eu tenho relançamento deles de pelo menos umas 10 gravadoras de fora. As últimas foram Green Race dos Estados Unidos, Osmosis da Alemanha e a Fuad Records da Itália. São reedições, edições comemorativas e outros. E assim a banda se popularizou. Nos anos 90 é que vimos a repercussão de tudo isso. Mas só percebemos mesmo a dimensão de onde a banda tinha chegado por causa das Redes Sociais. Eu lembro que eu nem tinha Orkut e já havia página da banda, e no Facebook também, Instagram…Essa galera que curte o som que mantém viva a cena.

 

Roadie Metal – Quanto tempo a banda durou e porque acabou?

Ricardo – A banda durou uns 5 anos mais ou menos. Nos anos 80 mesmo estava com tudo precário mesmo. E tive um problema renal, uma nefrite na época e o médico falou para parar com tudo.  Sai da banda, meu irmão acabou saindo também. Ainda houve um lançamento da banda Into the Strangers. Depois encerrou as atividades, e ainda tinha um resto de estúdio do Sarcofago, Mutilator, do Sepultura, do Overdose, chamado The Lost Tapes. Esse disco hoje é uma raridade. Mas nunca mais o João da Cogumelo teve interesse em relançar, então é uma raridade. Portanto o original na Europa pode chegar a 400 euros.

 

“ESSA GALERA QUE CURTE O SOM QUE MANTÉM VIVA A CENA”

 

Roadie Metal – Como é sua visão do Metal no Brasil hoje? Você tem acompanhado? Como acha que tem sido?

Ricardo – Acompanho sim. Voltei a tocar recentemente numa banda chamada Garagem Dinossauro. A coisa mudou muito né? A galera da minha idade é tudo tiozão né? (risos). Todo mundo casou, tem filhos, mas por incrível que pareça, a galera dos anos 80 (citou vários músicos das bandas da época) todos ainda curtem o som e alguns ainda estão em ativa como: Witchhammer, Holocausto, Overdose, Kamikase…Mas o que mudou…Eu tocava todo fim de semana no Ginástico (casa de shows) para 7 mil pessoas, nós e outras bandas. Hoje não tem tanto espaço para tocar. Hoje tem bandas boas como o Drowned!

Roadie Metal – Você acha que hoje estão dando mais valor para o cover? Como você vê o espaço para o autoral?

Ricardo – Bom no nosso tempo tínhamos Cogumelo, Woodstock, Rock Brigade, Baratos Afins. Eram gravadoras que apoiavam o autoral. O catálogo dessas gravadoras era muito rico. Hoje em dia não está se produzindo muita coisa. Mas o curioso é que a moçada hoje, eu vejo que curte o revival dos anos 80. A cena tem que se renovar por influências. Essas bandas que eu gostava como Slayer, Anthrax, estão se aposentando né? E não tenho visto a cena se renovando. O que vai ser do Heavy Metal? Não tem pintando uma banda de expressão. Eu vejo pelas camisas dos molequinhos nos show, são todas que nem as camisas dos Tiozão. Sempre as mesmas bandas.

 

https://www.youtube.com/watch?v=E4TqyvSJHlI

No fim da entrevista fiquei segura de que o Brasil conseguiu dentro da sua condição de país subdesenvolvido trazer para o mundo uma postura potente e de impressionante expressão musical que vai muito além do que é divulgado ai. Sabemos da importância de bandas como Sepultura, Angra ou Krisiun para estampar nossas capacidades. Mas é como um iceberg. Há imensa coisa produzida com qualidade e ela pode tanto estar nos primórdios do movimento, como pode fervilhar nas bandas de agora e pode se perdurar por toda eternidade. E quanto mais atitude e enfrentamento mais metal teremos por aí. Mais Brasil Metal vamos espalhar pelo mundo. Assim seguimos. Assim é a Roadie Metal. Do Brasil para o mundo!

By Verônica Mourão. Ago, 2017