Amorphis é uma das poucas bandas que conseguem ao mesmo tempo atingir uma excelência musical e lançar tantos trabalhos em um curto período de tempo. Workaholics, lançam trabalhos complexos e grandiosos com um intervalo de tempo de, no máximo, três voltas da Terra em torno da Estrela que nos ilumina. Pouco para nós, meros ouvintes de sua obra. Suficiente para aqueles que o criam.
Outra característica que atesta o Amorphis como um dos grandes nomes da música atualmente é a completa despretensão de seguir padrões ou rótulos musicais. Não, nem tente enquadrar o Amorphis dentro de um gênero. Por exemplo, os traços Death/Doom restam tão somente nos vocais guturais de Tomi Joutsen. Até mesmo “Progressive Death/Doom” é um termo muito pequeno para o tamanho e abrangência musical da banda finlandesa. Elementos de Progressivo, Folk e World Music se juntam para moldar o Som do Amorphis, sem que os dois últimos estilos citados roubem o peso característico do primeiro.
E aqui este escritor aproveita para confessar um pecado: demorei muito para ouvir Queen Of Time, o álbum mais recente da banda e o objeto de análise deste texto. Um pecado não, dois. Amorphis nunca foi uma prioridade minha dentre as bandas que emergiram no movimento Death/Doom noventista. Os conheci por acaso, após descobrir que eles foram a primeira banda a ter um verbete cadastrado no Encyclopaedia Metallum. Obviamente conheço bem os três primeiros álbuns do Amorphis e já tinha ouvido o suficiente dos álbuns mais recentes para compreender a evolução musical e saber a que ponto de criatividade chegara a banda finlandesa. Mas quando Queen Of Time foi lançado, as primeiras análises que li foram de que este álbum tinha elementos orquestrais imponentes. E eu costumo fugir de bandas com “elementos orquestrais imponentes” assim como certas pessoas fogem de certas conversas ou debates, principalmente quando elas se fazem necessárias lá. E sim, eu preciso estar a par do que acontece no Doom Metal, mesmo que o tema sejam bandas que nasceram no limbo sombrio do estilo e passaram a explorar novos territórios musicais.
Até que tive a sorte de saber que eu seria o incumbido de analisar Queen Of Time para esta egrégia seção “Roadie Metal Cronologia”. Ora, ora! Aquela conversa de “orquestrações imponentes” era pura balela, fruto de análises hiperbólicas. Mas compreendo que os analistas que afirmaram isso estavam tentando descrever de suas formas a magnitude de Queen Of Time. Sim, os elementos orquestrais existem, mas não em primeiro plano. O que há em Queen Of Time são arranjos de teclado cirurgicamente balanceados com o peso das guitarras e a poderosa cozinha. Muito além deste curto diagnóstico: elementos de World Music surgem naturalmente, muito naturalmente, e são muito bem costurados. E aqui já adianto um dos grandes responsáveis por este feito: Jens Bogren! Um dos grandes produtores da atualidade, Bogren consegue como ninguém mixar o peso do Heavy Metal com a beleza dos teclados e a imprevisibilidade de elementos musicais típicos de Folk e World Music. Tudo isso com todos os instrumentos bem em evidência, um peso descomunal, emoldurados em um som tão cristalino quanto os lagos finlandeses.
Agora sobre Queen Of Time em si, este álbum é tão rico em detalhes que seria necessária uma resenha para cada música. Farei isso com Daughter Of Hate, pois dedicar-lhe uma frase é insuficiente para ela. Bastante variada, Daughter Of Hate apresenta um refrão fortíssimo, como uma tempestade no começo da noite em alguma região isolada. Dentro de suas variações, um saxofone surge solando de forma melancólica e até zombeteira à sua mente já perturbada com tamanho massacre criativo. Lá pelo meio, uma calmaria com timbres limpos serve de base para um texto recitado em finlandês pelo artista local Pekka Kainulainen antes que o poderoso e tormentoso refrão retorne e acabe com qualquer vestígio deixado por sua primeira passagem.
The Golden Elk também merece um trecho a parte. Uma pegada mais próxima ao Gothic Rock conduz a composição antes que ela caia em um trecho solado por violão flamenco com bases atmosféricas e etéreas, como se estivéssemos acampados num deserto a noite. Esta música é um dos exemplos mais explícitos de como Tomi Joutsen usa com maestria sua versatilidade vocal. Seus vocais limpos comandam Wrong Direction para uma direção correta e belíssima. The Bee lembra Orphaned Land dado o forte uso de escalas árabes (cortesia também de Jens Bogren, que trabalhou com a banda israelense). Os timbres de teclado que Santeri Kallio escolheu para Message In The Amber remetem ao Duran Duran, como se a referência do Synthpop quisesse soar Heavy Metal. Heart Of The Giant possui uma levada mais próxima ao Power Metal em seu cerne e é a que mais se aproxima do senso comum do que seja Metal Progressivo. Mais uma vez lembramos fortemente de Orphaned Land. Talvez a resposta seja que a orquestra que o Amorphis usou seja a mesma que trabalha com a banda israelense. Jens Bogren mais uma vez se mostra providencial para a perfeição de um álbum.
We Accursed consegue soar emocionante e poderosa do início ao fim. Grain Of Sand é movida por compasso 3/4, em um andamento cadenciado e clima intimidador. Amongst Stars é mais acessível e traz a participação de Anneke Van Giersbergen, a melhor cantora de Heavy Metal (dentre as que cantam limpo e/ou lírico) na opinião deste escriba. É resgatado um pouco do Death/Doom noventista, UM POUCO, na faixa que encerra a versão regular do álbum, Pyres On The Cost, pela presença de fraseado típico de Death/Doom em alguns arranjos de guitarra e na interpretação visceral de Tomi Joutsen, que teve a ajuda de um reverb cavernoso. As duas faixas-bônus, As Mountains Crumble (esta com um pouco de tempero Prog setentista) e Brother And Sister, ficaram de fora da versão regular por pura opção da banda. Funcionam como aqueles reservas de luxo que todo bom time tem se quiser usar uma carta na manga para ganhar de vez o jogo.
Mesmo com a escalação titular de músicas, o Amorphis ganhou esse jogo foi de goleada. As bases pesadas de Tomi Koivusaari, o baixo marcante de Olli-Pekka Laine e a bateria segura de Jan Rechberger (este filho de uma égua só resolveu usar seus rototons no finalzinho da última faixa-bônus) garantem um paredão sonoro poderoso e imponente, por cima de onde o guitarrista Esa Holopainen pode derramar seus solos inspiradíssimos e suas belas harmonias. Os teclados de Santeri Kallio aparecem de modo a não roubar a primazia das guitarras (estamos falando de Heavy Metal, não é mesmo); pelo contrário, seus solos e arranjos surgem muito bem alinhados e providenciais. Não há mais o que falar de Tomi Joutsen além do que já foi dito nos parágrafos anteriores.
A refinadíssima arte de capa ficou por conta de Jean “Valnoir” Simoulin, um dos mais criativos artistas gráficos do Metal e dono de uma arte extremamente detalhista e perturbadora. A capa que ele criou para Queen Of Time não é diferente e ilustra de forma plástica toda a complexidade e perfeição da obra musical contida por trás de si. Queen Of Time não é só um álbum do Amorphis. Mais que isso: não é só um álbum musical. É um compêndio daquilo que a imaginação humana consegue alcançar em termos de criação sonora. E parece que, no caso dos compositores do Amorphis, essa extremidade é alcançada sem esforço algum. Os deuses do panteão finlandês devem estar com inveja de suas criaturas. Que eles, se estiverem investidos de misericórdia, me perdoem de meus pecados. Amém.
P.S.: Rafael Bittencourt, do Angra, foi creditado em Queen Of Time. Ele foi o responsável por criar as letras de orientação latina.
Queen Of Time – Amorphis (Nuclear Blast, 2019)
Tracklist:
01. The Bee
02. Message In The Amber
03. Daughter Of Hate
04. The Golden Elk
05. Wrong Direction
06. Heart Of The Giant
07. We Accursed
08. Grain Of Sand
09. Amongst Stars
10. Pyres On The Coast
11. As The Mountains Crumble (faixa-bônus)
12. Brother And Sister (faixa-bônus)
Line-up:
Tomi Joutsen – vocais
Esa Holopainen – guitarra-solo
Tomi Koivusaari- guitarra-base
Santeri Kallio – teclados
Olli-Pekka Laine – contrabaixo
Jan Rechberger – bateria
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10/10